Chegou-me às mãos um objeto que
carece de extremos cuidados. Dizem que é como uma semente que, de forma não
literal, se planta numa pessoa a ver se nela nasce alguma coisa. Dizem que é
perigoso e que causa habituação. Dizem que o seu conteúdo leva as pessoas a
alterarem os seus comportamentos. Estamos todos informados sobre o efeito do
consumo excessivo de álcool no organismo, sobre os riscos da internet, sobre as
agravantes de uma vida sedentária, sobre os malefícios do tabaco para a saúde,
sobre a crescente taxa de obesidade infantil, que mesmo com todas as prevenções
continua a crescer, sobre os perigos de contágios disto e daquilo, enfim, um
leque de conhecimento para nos prevenirmos deste perigoso mundo. Tudo quanto
uma pessoa carece para alterar alguns comportamentos. Quanto a isso, de acordo,
afinal de contas sempre que a expressão "alterar comportamentos"
surge numa frase, prevê-se que essa alteração seja para melhor e por isso vem-nos
à ideia aquela tal coisa a que alguns chamam evolução e portanto estamos todos
de acordo como pessoas ponderadas e liberais que somos. Embora possamos ou não
agir em conformidade com isso, é certo que estamos conscientes acerca dos muitos
perigos anteriormente referidos e dos outros que por desleixo ou
subentendimento não foram referidos. Porém, por muita informação que me tenha
chegado, nunca ouvi alguém falar seriamente sobre o perigo que é ler um livro,
sobre os efeitos nocivos de entrar num museu ou assistir a uma peça de teatro,
sobre os danos irreparáveis que o simples ato de pensar deixa sobre aqueles que
ousam fazê-lo. Destes perigos não constam colóquios, conferências nem
congressos que poderiam muito bem ter o nome “O contágio de uma ideia”, não se
discute o problema em debates, não se fazem ações de prevenção como "Deixe
de se informar: um passo de cada vez" nem campanhas de sensibilização como
"Ler é obra do diabo". Este último não seria de todo improvável uma
vez que, dada a quantidade de livros que outrora se queimaram neste mundo,
imagine-se apenas a monumental biblioteca de que está o inferno servido. Em
parte é compreensível, que em verdade vos digo, não desejo a ninguém a difícil
tarefa de convencer uma plateia de que o saber, como não ocupa espaço, se
mantém como o volume de um livro mesmo quando deste só restarem cinzas, como
fez por explicar Lavoisier. Isto para dizer que as páginas pintadas com tinta dos
livros não são perigosas, as ideias que nelas carregam sim, e essas são muito
mais difíceis de exterminar. Não bastará queimar também os corpos dos que em si
as transportam porque devido à sua elevada taxa de contágio não há fogo capaz
de acabar por completo com uma ideia. Não há rotulagem nos livros que nos
informem acerca dos seus possíveis efeitos colaterais nem da dosagem diária
recomendada. Não constam os alaranjados símbolos de nocivo, tóxico ou perigoso.
Nada diz sobre manter fora do alcance de pessoas de uma determinada faixa
etária ao qual as informações contidas naquelas páginas possam conduzir a
comportamentos desviantes. Em vez disso surgem algumas informações sobre a
editora que se atreveu a por no mercado o tão perigoso artigo e o nome do
redator que de forma silenciosa lança o vírus e fica à espera do seu contágio.