A experiência, por mais contestada que tenha sido, serviria para todos verem como era a vida daqueles que num contexto literal não o podiam fazer. O dia da cegueira que se instituía naquele ano e que se esperava que fosse perpetuado nos seguintes, ficaria na história como o dia em que todos se deveriam comportar como cegos. Ainda que de uma cegueira fingida se tratasse e apenas no curto período de um único dia, a iniciativa foi contestada, não poderia agora o país parar por tão inoportuna ideia, haviam serviços para serem prestados, pessoas que como é hábito tem as suas vidas e carecem de cuidados que só um bom par de olhos pode auxiliar, como operações médicas a realizar, viagens de avião, distribuição do correio, escolas que precisam de funcionar, todos e quaisquer serviços no qual a visão era fundamental. Não, não será viável, diziam uns, Trata-se apenas de uma iniciativa grandiosa e solidária, contrapunham outros. Foram usados argumentos baseados na economia do país, que, ao que parece não se podia dar a estes luxos de ver o seu povo cego, argumentos sociais, onde se referia que, tendo sido esta uma iniciativa para alertar para a dificuldade que os cegos têm em lidar rotineiramente com a sua sina, poderia ter efeitos contrários como o desprezo e até ódio pelos mesmos, políticos, onde se disse que este governo se há coisa que tem feito desde que funções assumiu é cegar constantemente o seu povo e portanto um dia como este, só se falta fizesse, o que parecia não ser o caso, um ou outro excêntrico argumentou ainda que, sendo a visão o principal dos sentidos, seria um crime tentar privar as pessoas desse privilégio que tendo alguém o dom de ver, optasse por não o fazer de sua própria vontade. Durante os dois meses que antecederam ao dia marcado como o dia da cegueira em que pela primeira vez na história um país estaria à beira de conseguir cegar toda a gente, ainda que por um único dia, não se falou de outra coisa, quer neste país, quer nas suas vizinhanças onde o acontecimento foi tido com estranheza mas aplaudido por muitos que viam na iniciativa algo a replicar no seu próprio país. Não se compreendia, porém, como é que se pretendia retirar o tão precioso sentido que é a visão aos milhões de cidadãos que tiveram o acaso de ter nascido neste país. Muitos reivindicaram a iniciativa com campanhas contra onde se incentivou as pessoas a não sucumbirem a interesses e lobbys de grandes instituições, foi especulado que estaria a ser preparado de forma sigilosa um ataque aéreo que tomaria lugar no dia em que, palavras dos opositores, O povo estará entretido a fingir-se de tolerante e compreensivo para com os cegos, quando, em quaisquer outras circunstancias eram capazes de os desprezar. Apesar de se ter formado uma vasta oposição, a iniciativa não foi cancelada, o dia que se queria de alegria em que todos provariam da infelicidade ou simplesmente acaso de não serem capazes de ver, estava cada vez mais próximo e a apenas uma semana do tão aguardado evento, o governo anunciou que iria atuar junto das autarquias de forma a cessar toda a rede nacional de estradas, no qual, conste, não foi previsto regime especial para veículos em missão urgente de socorro nem quaisquer outros que não sendo de socorro, carecem de igual urgência. Mais uma vez, a contestação daqueles que com medo de vir a morrer ou a precisar de cuidados menores, ou maiores, visto que depois de mortos não se dobram os trabalhos, vieram a tentar saber junto de superiores hierárquicos como seria possível que ao tentar defender os interesses de uns, os que não viam, se esquecessem daqueles que vendo prefeririam não ter de ver toda esta situação. Sem resposta prévia apenas um comunicado embrionário sobre a defesa de interesses coletivos como era o dia da cegueira, um breve rol de palavreado mas que nada continha na sua essência sobre os problemas anteriormente apresentados. Os dias seguintes foram mais calmos, os apoiantes da iniciativa tinham ganho força com os preparativos que um país às cegas obviamente carece, porém, sendo esta uma causa que pretende alertar para o facto de este país em particular e o mundo em geral não estar devidamente adaptado para os invisuais, os cuidados foram mínimos, e os serviços públicos que também se esperaria que fossem, no mínimo, também eles mínimos estavam ainda num grande impasse sobre se na pratica iriam ser garantidos ou não. No dia anterior à iniciativa, a oposição voltou a atacar, se este país estaria prestes a embarcar em tal mar, metáfora curiosa tendo em conta o povo de que falamos que embora não mencionado, imaginar-se-á de quem se trata, interroguem-se esses se, depois deste dia não viriam outros por sua vez para sensibilizar as pessoas para outras deficiências como a surdez, ou a mudez. Imagine-se um dia, esse período diurno e noturno de vinte e quatro horas, em que ninguém falasse e um outro numa outra data em que ninguém ouvisse...
No dia seguinte ninguém cegou, frase parecida com a de início e de término de um livro que, a saber aborda o complexo tema da morte, a vontade que alguns têm de viver para sempre e como a vida eterna é pior do que a própria morte, a respeito disto diria talvez Caeiro que quem teme a morte acha de alguma maneira que a pode contornar, porque se a tivesse a ela como a única certeza, aceitá-la-ia como realidade e nem nela pensava. Ora, apesar de ninguém ter cegado, o que no dia dedicado à cegueira parecia capricho da própria, alguns vieram a afirmar que não só ninguém cegou como os que até então ainda viam deixaram de ver por completo. Palavras estas que poucos entenderam mas que todos escutaram.