As
epifanias vêm sempre depois de um café. Pergunto-me se teria notado se ao invés
de um café tivesse sido outra coisa qualquer que não despertasse em mim tal
atenção. A história começa quando, depois de tomar o meu habitual café da
manhã, recebo algumas moedas como troco, dado o acaso de ter pago com uma nota
nesse dia. Estava a coloca-las na carteira quando me apercebo, não pelo tamanho
da moeda em questão, quase imperceptivelmente mais larga que o euro, mas muito
por causa do desenho da coroa que nunca havia visto em nenhuma das diferentes moedas
de um euro que até à data já me passaram pelas mãos. Movido de curiosidade pela
novidade, que sempre é a condutora para uma maior atenção, fiz uma análise
reforçada do aspeto superficial da moeda. Que bonito desenho na coroa, será uma
edição especial de comemoração, pensei. Será certamente uma moeda singular e
quiçá uma edição limitada e de coleção. Não era. Não se tratava de uma edição
limitada, ou de coleção. Era especial sem dúvida, aos olhos de quem a observava,
mas não passava de uma moeda que não o euro e que desde logo me suscitou
curiosidade. As semelhanças entre as duas moedas são tremendas, ao ponto de
esta passar quase completamente despercebida entre os euros. Talvez o seu
brilho metálico, característico das moedas novas, tenha dado destaque ao
bolívar venezuelano que eu tinha nas mãos. Não acredito, nem quero acreditar,
que tenha chegado a mim porque alguém a tenha propositadamente despachado, e
assim fazer gato passar por lebre como popularmente se convencionou dizer.
Ainda que assim tenha sido, e embora me pudesse sentir ligeiramente enganado –
não desconfiando da inocência de quem fez com que o bolívar me chegasse às mãos -,
não consigo contudo sentir-me burlado. Não fiquei com aquela sensação de ter sido
defraudado como Calouste quando, para gastar a medjdeh que o pai lhe dera como recompensa pelas boas notas, compra
um tetradracma de Mileto. Ainda que tenha feito um bom negócio quando mais
tarde o vende por uma libra de ouro, bem mais que um medjdeh, fica a saber que se tratava, não de um tetradracma de
Mileto, mas de um tetradracma de Siracusa e que o seu valor era bastante
superior ao que lhe haviam dado por ele. Apesar de o próprio Calouste ter
trapaceado o primeiro vendedor, ficou muito irritado por terem-no ludibriado a
ele. Seria este um dos primeiros indícios dos traços rancoroso e enfurecido da
personalidade do mais notável e fascinante membro da família Gulbenkian do qual
me confesso profundo admirador. Voltando ao meu bolívar venezuelano, e embora monetariamente
esta moeda não valha mais do que uns singelos quinze cêntimos, simbolicamente,
para uma pessoa como eu que atribui valor a tudo, ou quase tudo, acaba por
valer mais do que o valor com que está numismaticamente cotada. Tem valor por
não ter, na Europa, monetariamente valor nenhum. Tem valor por servir meramente
para ser contemplada como uma preciosidade, como um objecto mítico tal como
aquelas moedas antigas, que já não são usadas em parte nenhuma e que, por isso,
se lhes tira de cima o peso do uso corredio, banal e quotidiano que damos às
moedas. São relíquias como aquela nota turcomana de um bir manat que exibo orgulhosamente numa prateleira de estante, que
mesmo com as variáveis, embora que pequenas, das cotações desta unidade
monetário e do euro, não fazem com que o câmbio transponha o valor de uns
exíguos trinta cêntimos. Apesar disso, o desenho de Muhammet Togrul Beg Türkmen
na nota de tons verdes, e por ser de tão longínquo e pouco conhecido país, completamente
exótica ao que por cá circula, fez-me adorá-la como Calouste quando, deslumbrado,
defrontou pela primeira vez o então tetradracma de Mileto. A moeda teve como
fim a contemplação. Havia de colocar o bolívar na estante junto da nota de um bir manat.
As
moedas e notas andam por aí numa viagem sem destino, de mão em mão, de carteira
em carteira, ora num país ora noutro, valorizando ou desvalorizando, como
autênticos travel bugs de geocaching
que fazem quilómetros sem que ninguém dê conta, silenciosamente e em simbiose
com os seus beneficiários, que não dando por isso, mantêm-nas em circulação.