Alegoria do Pi

Havia de ser este o dia em que, sem que nada o fizesse prever, nem um eclipse solar - nem lunar, nem nenhum alinhamento planetário, nem qualquer acontecimento à escala cósmica, nem mesmo à escala microscópica, que seriam revelados mais algarismos do valor de pi do que alguma vez havia sucedido de uma só empreitada. O acontecimento foi tido como marco na historia mundial, - e em particular na história humana, porque, refira-se, só esta particular espécie, até onde a nossa compreensão nos deixa antever, se empenha tanto em descobrir os algarismos que constituem este irracional número. Por muitos algarismos que sejam descobertos do valor de pi, e partindo do axioma que este se trata de um número infinito, pi estará sempre infinitamente incompleto - pouco menos infinitamente incompleto do que quando este não passava de um singelo e arredondado 3,14. Que maçada este caprichoso pi que sendo um único número, não finda em algarismos. E que persistente esta estranha criatura que mesmo sabendo, ou dando como sabido, que não se acabam os trabalhos na desenfreada demanda em busca dos algarismos que constituem o pi, não se dá por vencida nesta guerra, como se fosse possível o infinito dar-se por vencido contra este bicho da terra tão pequeno e tão finito. Vá-se lá saber se existe alguma ordem ou sequência para as decimais de pi ou se todos aqueles algarismos são dispostos como que aleatoriamente uns após os outros. Ainda não se descobriu, certo é porém que até agora naquela aparente infindável sequência numérica, ainda não surgiu nenhum padrão, nada com o qual se pudesse estabelecer uma relação de semelhança. Depois disto, maior descoberta ainda seria a finidade do pi. O antónimo daquilo que tenho vindo a assumir como verdade até então. Imagine-se agora que aquilo que pensávamos ser infinito, afinal não o era. Havia uma altura, não interessa em que ordem dos bilhões de casas decimais, que punha fim a esse tão grande número. E se pi tem fim então é infinitamente mais pequeno do que aquilo que se pensava. Poderemos demorar um ou dois séculos a determinar o seu exato valor, talvez mais, talvez não seja previsível, mas fica novamente a ideia que estaremos infinitamente mais perto de o conseguir do que se pi fosse infinito. Como não há indícios de que termine pi, e não passando tudo isto de uma suposição, deixaremos este assunto para aqueles que nele queiram pensar. A notícia de que tinham sido acrescentados tamanho número de algarismos à já grande lista deles, chegou a todo o mundo em poucas horas. A comunidade científica ficou muito agradada com o passo dado e questionou se haveria algo que não fosse de humano alcance. Os jornais e magazines deram moderado destaque ao pi, que se via agora maior, apesar de teoricamente continuar infinito. Em toda a imprensa, não se encontrou mais do que um artigo com duas colunas de texto sobre este assunto, o que refletiu o interesse da generalidade das pessoas que não deram muita importância a tal facto. Não se encheram praças, não se cruzaram avenidas. Não se celebrou o pi, que apesar de já ter um dia seu, haveria de ser seu também este - e todos os seguintes. Tudo passou com uma leviandade pouco ao nível do famoso número do perímetro do círculo tão admirado em todo o mundo e estudado ao longo de séculos de história. O impacte foi bem menor do que aquilo que se esperava. Descobertas destas não movem multidões, não unem povos, não mudam a vida tal como ela é. O pi é o mesmo e sempre o há de ser, com mais ou menos uns biliões de algarismos conhecidos pelos humanos. Havia de ser este o dia em que, sem que nada o fizesse prever, tudo continuaria na mesma.