Breve Reflexão sobre Palavras

As palavras ferem. Ferem por isto e por aquilo. Ferem por tudo e por nada. Ferem quando são inoportunas ou frias, quando surgem numa ou noutra frase de que não gostamos, mas não o dizemos, ferem naquelas ocasiões em que não estamos a contar mas eis que elas surgem, muitas vezes com uma frequência maior do que aquela com que aparecem no dicionário. Ferem e não deixam de ser palavras, não deixam de ter toda aquela calma e leviandade, principalmente quando escritas, nem de serem só palavras e de significarem muito pouco, de serem tão momentâneas quanto vazias, principalmente quando ditas. Ferem naqueles momentos em que não estamos preparados para as encarar com a determinação e coragem que as referidas palavras merecem, porque as palavras são assustadoras quer quando lidas, ditas ou até pensadas. São temidas por tantos que alguns não chegam sequer a usá-las, vir-se-à a saber que pelo simples medo que delas têm ou só porque não estão totalmente seguros da sua existência. E ferem. Ferem ainda mais quando não estão em concordância em género, número ou grau, quando são pobres em termos lexicais, ferem quando estão mal escritas ou quando são ditas de forma errada, quando compõem frases agramaticais, ferem quando surgem tão repetidas vezes, quer na escrita quer na oralidade, sem que nada nos indique que figuras de estilo como a anáfora, anadiplose, diáfora, epífora ou pleonasmo estão a ser empregues. Ferem por, num texto, não se conseguirem harmonizar o suficiente para que o leitor, ao as ter lido não notasse que as lera deveras. Porque se notou significa que alguma coisa não está por certo a resultar. Não se consegue aquele distanciamento tão desejado de ler um texto simplesmente pelo prazer de o ler, sem que se pense nas rodas dentadas das engrenagens e em todos os mecanismos que estão por detrás dele e que fazem com que este funcione. E para isso, para que flua sem ter de ser pensado, cada palavra tem de ser cuidadosamente escolhida para proporcionar ao leitor aquele gosto de ler um texto bem escrito, por mais perturbador que o seu assunto possa ser. Os sinónimos são por isso algo a ter bem em conta, mas é importante não esquecer que apesar de as palavras aparecerem relacionadas no dicionário de sinónimos, cada uma assume-se como única o que não torna de todo indiferente o uso de uma determinada palavra ou de um seu sinónimo. Subúrbios, arredores, periferias, três palavras com um significado semelhante, geralmente conhecidas por estabelecerem uma relação de sinonímia entre si. Mas afinal, qual delas tem popularmente uma conotação mais negativa? Porque usamos uma e não outra dependendo do contexto? Por ventura terá sido o léxico coletivo, por influência talvez da origem etimológica da palavra, que ditou este preconceito também ele coletivo em torno dos sinónimos. Se todas estas palavras são sinónimos, que no quotidiano significam essencialmente o mesmo, não deveria existir problema em utilizar qualquer uma das denominações, termos ou designações - note-se o uso de três sinónimos. Não é necessário o uso de todos eles, não em simultâneo, mas ficam aí para mostrar como qualquer um deles expressa aquilo que pretendo dizer. Todas casam perfeitamente nesta situação, mas nem sempre assim é, e por isso existem sinónimos que são naturalmente para serem usados. Mas afinal, de entre os sinónimos largo, amplo, vasto, extenso, espaçoso ou grande, qual deles o que tem maior área? De entre inovador, moderno, vanguardista, atual, contemporâneo, progressista, qual deles o mais recente? De entre brilhante, cintilante, luminoso, fulgurante, luzidio ou resplandecente, qual deles imite mais luz? Porque será que para mim remoto é mais distante que longínquo, do que longe e do que afastado? Quão mais distante será o remoto do longínquo por exemplo? Como é que numa palavra consegue estar subentendida toda esta informação? Se por um lado sinónimos são palavras que estão apenas relacionadas e que não podem ser somente vistas como maneiras diferentes de dizer uma mesma coisa, porque muitas vezes não se trata de uma mesma coisa, por outro não devemos ter ideias pré-concebidas sobre o significado de cada uma. Talvez subúrbios ou periferias sejam frequentemente mais marginalizados do que arredores. Assim como outras palavras acabam por sê-lo em consequência do uso que lhes damos. As palavras ferem.

Átomos

Os átomos reuniram neste século, neste momento, para constituírem aquilo que eu sou hoje. É assim com cada um de nós. Certamente haverá uma ordem que por mais aleatória que seja, ditou que assim fosse. Hoje sou este, ontem fui outro que já não sou e amanhã outro serei. Essencialmente o mesmo, mas mudado em parte devido à matéria que me constitui e que muda a cada instante. Mudamos tantas vezes que se torna difícil definir aquilo que somos através da matéria que nos constitui. E mesmo essa matéria é uma ínfima parte, - quase infinitamente mais pequena - do restante espaço vazio que há em cada um de nós. Somos o vazio, pouco mais de matéria mas essencialmente isso. Depois de eu morrer, não serei mais nada senão uma reorganização dos átomos que outrora foram meus. Se é que posso considerar meus esses átomos que nada de mim levarão. Eles continuarão a ser átomos. Hão agora de ir ser outra coisa para um outro lugar, não importa o quê nem para onde. Na verdade não morremos, nem tão pouco nascemos, reorganizamo-nos apenas. Se todos nós somos estes átomos que sempre existiram ao longo da história, e que por bem continuarão a existir, muito mais velhos do que a idade que nos dão e que nos constituem, unidade básica de tudo o que existe, que parte de nós é afinal somente nossa? Existirá ao menos algo intrinsecamente nosso, que não é de mais ninguém? Algo que não faz parte de um todo, onde não há proprietários da matéria, nem daquela que nos constitui? Concluo portanto que não somos nossos, não nos pertencemos. Onde estariam os átomos que hoje carrego no início do século XIX? Será que alguma parte de mim participou nos teatros da antiga Grécia, no Cerco de Lisboa, nas Revoluções Francesas, na Caça às Bruxas, nas Cruzadas à Terra Santa, na Batalha de Alcácer Quibir ou até na Primavera Árabe? Estariam estes átomos numa outra parte do qual não reza nenhuma história nem se contam mitos nem lendas? Numa parte que embora não tenha sido nada no passado, constitui o que somos no presente? É interessante pensar na impossibilidade de dar resposta a estas questões, na História que carregamos connosco desde que nascemos, fragmentos que poderiam ter tido um papel decisivo e que nós não sabemos, nem nunca saberemos. Repetir-se-á a História por causa de no fundo envergarmos sempre os mesmos átomos? Por termos em nós fragmentos de biliões de outros? A história repete-se tanto como repetidos somos nós. Somos História. Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Disse-o Lavoisier envergando em si os átomos que o formavam na altura e que haverão de ir ter febre para outros cérebros do nosso século ou de séculos seguintes. Não se perde nada, nem nada se cria, tudo se reorganiza.