Ensaio Verdade/Paz

A filosofia aspira à verdade que o mundo não quer. A filosofia é portanto, perturbadora da paz. As premissas que nos são apresentadas inicialmente levam-nos a concluir, de certa forma, que ao aspirarmos à verdade que o mundo não quer, estamos a perturbar a paz. Qual é a verdade que o mundo não quer? Será que nós também precisamos dessa verdade, mesmo que para isso a paz seja perturbada? Poderá a verdade ser perturbadora da paz?

É importante esclarecer a ligação existente entre verdade e paz. Não são conceitos subordinados um ao outro. O mundo mostra-nos regularmente que existe paz em lugares onde, segundo os nossos ideais diríamos que não existe verdade. O contrário também é válido, o conhecimento da verdade, ou a procura pela mesma, não conduz necessariamente à paz. Podemos concluir que os conceitos de verdade e de paz são relativos. Nunca teremos total conhecimento da verdade, por um lado porque enquanto ser irrequieto, o Homem não desiste, nem desistirá de procurá-la. Tem-no feito desde há milhares de anos e até os regimes mais opressores deste planeta são prova disso. É talvez aqui que se estabelece uma ligação entre verdade e paz. Se tivermos consciência de que a verdade absoluta é inalcançável, teremos certamente a racionalidade de que se quisermos, somos capazes de impor falsas verdades aos outros. Manipular as pessoas é dar-lhes o que elas querem. A verdade. Mesmo não a possuindo, podemos impô-la no outro como máxima a seguir e a obedecer acima de todas as coisas. A melhor forma de implementar a paz é subordinar o pensamento a uma verdade estabelecida e evitar que a mesma seja refutada. A paz não se liga a uma verdade que consideramos universal e inalcançável, mas sim aquela que é incontestada e portanto aceite por todos. A unanimidade é pacífica. 

Haverá paz em regimes ditatoriais que controlam todo a informação que pode ser dada às pessoas, sujeitando-as ao desconhecimento e muitas vezes à fome extrema? Certamente haverá, contudo, é uma paz subjugada aos interesses de superiores hierárquicos que pretendem a todo o custo manter a sua soberania. Por isso, esse tipo de métodos de domínio só pode obter a nossa reprovação tendo por base uma ideologia democrática ocidental pela qual nos regemos.

A paz tem portanto um simbolismo duplo. Pode ser descrita como um ambiente em que prevalece o respeito, tolerância e cooperação ou então, por outro lado, como um ambiente de medo, submissão e privação. Estamos perante formas de paz diferentes que se expressão naturalmente de forma diferente na sua essência, mas que em ambas é de esperar existir uma paz social que torne as acções populares o mais pacifistas possível. A paz tem também um lado fascista e extremamente perturbador. Quando se indicou, em 2014, Malala Yousafzai para o prémio Nobel da paz, que aliás acabou por vencer, claramente não foi pelas suas atitudes pacifistas. A passividade e o comodismo raramente mudaram o mundo. Foi exatamente pelo seu constante ativismo pelos direitos das mulheres no Paquistão. A necessidade de mudança, de implementar a paz sabendo porém que o caminho passaria pela ausência da mesma. Ou seja, não promovendo propriamente a paz, uma vez que se opôs ao regime, Malala promoveu a liberdade de expressão e o direito à educação o que lhe valeu o prémio Nobel. Malala promoveu a verdade, mesmo que para isso tivesse de perturbar a paz.

A melhor forma de impedir que a paz seja perturbada em prol da verdade, é subnutrir aqueles que se poderão opor ao poder. À partida, ninguém se revoltará se não tiver forças para isso. Não estamos a falar de fome, mas sim de uma subnutrição aguda, ou seja, apenas o suficiente compatível com a vida. Os regimes mais fechados deste planeta usam esse método para manter a paz. O raciocínio é simples, a prioridade de qualquer ser vivo é sobreviver. Enquanto tentamos sobreviver não temos tempo para pensar nem para nos revoltarmos. É característico do Homem ter fome de conhecimento, mas só se não houver fome de pão. As democracias europeias usam também elas métodos, embora que radicalmente diferentes, para manter a paz. A paz é importante para que um sistema possa funcionar e evoluir, e daí a redundância em ser procurada por quase todas as civilizações. 

A filosofia tem vindo ao longo dos anos a enfrentar ideias que não podiam ser refutadas porque, ao contrário de outros teoremas, não assentavam em axiomas, mas antes numa aspiração divina. A sua postura antidogmática foi então uma frente perante religiões que não concordavam com as suas teses e temiam novos raciocínios, ideologias e concepções da realidade que pudessem por em causa a fé dos seus seguidores. É de referir que o pensamento filosófico nunca assumiu uma postura ateísta, mas antes uma abstenção face a qualquer religião uma vez que isso condicionaria toda a dedução lógica do pensamento. Para procurar a verdade, temos de partir de um completo estado de neutralidade e abstinência, embora, na prática, isso não aconteça. Julgamos as nossas e as acções dos outros tendo por base os ideais definidos pela sociedade onde estamos inseridos.

Em suma, a verdade só é perturbadora da paz se tivermos medo das consequências que essa verdade possa ter sobre nós. A maior perturbação de paz a nível individual sucede quando vemos refutados conceitos que tínhamos como certos até então.

A Teoria do Adiamento

Adoramos adiar tudo e mais alguma coisa. Dá-nos um gozo enorme adiar seja o que for. Adiar é humano, tanto como errar e todas as outras coisas tipicamente humanas. Nunca, ou quase nunca fazemos aquilo que estamos convictos de que um dia vamos fazer. Isto porque os nossos planos são mais do que muitos e apenas uma pequena parte deles acaba de facto por se realizar. "Vou-me inscrever no ginásio!", "Vou reduzir nos fritos.", "Vou fazer voluntariado.", "Vou ler este livro." Promessas que com o tempo se vão desvairando, transformando-se o “vou fazer” em “hei-de fazer” e posteriormente numa fase já de derrota, em "queria fazer" até que se deteriora completamente caso não se venha a realizar. A indefinição do quando vamos fazer causa em nós uma sensação fantástica. É sem dúvida melhor viver num estado de "hei-de fazer um dia" do que num de "vou fazer no dia...". Viver no adiamento é por um lado acharmos que aquilo que queremos fazer está próximo, uma vez que é recorrente no pensamento, estando no entanto longe de vir a acontecer. Adiamos tanto o agradável como o desagradável o evitável e até o inevitável tentamos adiar. Em todo o caso é compreensível viver no adiamento. Adiar alguma coisa é prolongá-la no tempo. Proporciona-nos um grande prazer saborear uma comida de que gostamos muito. Nesta situação não estamos a adiar mas sim a antecipar o prazer resultante só de pensar no delicioso prato que temos à nossa espera. E, adiando esse prazer, prolongamos o prazer que nos dá saber que uma refeição vai ser do nosso agrado. Em certa medida, este prazer resultante da antecipação pode ser até melhor que o proporcionado pela degustação do prato em si.  Adiar é a procura de um prazer prolongado e constante. No entanto, a verdade é que imaginamos as experiências futuras sempre mais surpreendentes do que aquilo que elas vêm de facto a ser. Por isso, é de aproveitar a fase de adiamento, a fase do "Enquanto não chega" porque o resto não é assim tão bom. É uma desilusão. Uma treta.