Alegoria do Lava Mãos

Os entendidos diziam que não havia gente que mais as mãos lavasse do que esta. Corria então a notícia assim como a água que corria das torneiras para amaciar e lavar as mãos com o auxílio do sabão natural e de outros produtos. Eram estes os mais lavadeiros, aqueles que mais vezes faziam chegar a corredia água às tão carentes mãos. Gabavam-se uns por tão merecido reconhecimento nisto que respeito diz à higiene pessoal, pelo menos quando das mãos se fala, que são por certo a mais exposta e suja parte do corpo desta espécie. E como é característico deste povo já desde os primeiros tempos de civilização, o cumprimento é feito com um sociável aperto de mão. Embora não haja memória que por suja ou mal lavada mão se tenha deixado o cumprimento por fazer, estas querem-se limpas e tratáveis, mesmo que muito alegórico seja repartir a porcaria das mãos como se partilham tantas outras coisas. Que asseadas gentes e de bons costumes que prezam umas mãos bem lavadas que se possam apertar. Levantaram-se então outras vozes que não faziam grande este hábito de lavar as mãos. Argumentava o povo que se as mãos eram muitas vezes lavadas é por certo porque muitas vezes estavam sujas também. Porque sempre a necessidade fez a ocorrência e não seriam estes parvos ainda para com uma mão lavar a outra, e juntas se lavarem uma à outra, estando estas tais mãos já limpas. Instalou-se a discussão naquela terra. Se uns diziam que lavar muitas vezes as mãos era sinal de mãos não raras vezes sujas e cheias de bactérias, outros diziam que só podia ser bom sinal e um costume de se louvar o facto de as mãos serem muitas vezes lavadas. Rapidamente todos tinham opinião sobre o assunto. Para uns, que não viam motivo de exaltação popular num reles assunto de mãos e de água - que lhes tragam antes o vinho -, tudo isto não passava de um bom tema de conversa para chacota e animação. Para outros havia que de extrema importância era apurar o que se andava a passar nestas terras de gente lavadeira de mãos que não se entendia quanto à complacência de proferidas afirmações. Diziam outros que mais valia não se saber de nada disto que o povo sempre está bem quando não é desassossegado com estas questões que são questões que dão que pensar. Hesitavam agora uns de toda a vez que queriam fazer chegar água e sabão às mãos. Tornara-se isto de lavar as mãos um ato tão pensado, que já ninguém o fazia indeliberadamente. Chegara-se porém a uma espécie de consenso para apaziguar uns quantos parvos que tinham conflitos vários nas suas cabeças para tentar resolver o tão ignóbil problema popular. Argumentavam então que vistas as coisas como elas são – embora não se saiba como são as coisas para todo um universo de pessoas, cada uma com a sua sina -, estaríamos bem posicionados se estivéssemos no meio da tabela no que diz respeito aos povos que mais lavam as mãos. Parece impossível que não se contente esta gente com, pelo menos uma vez na vida, um primeiro lugar numa coisa qualquer. Se uns diziam que se é este o povo que mais vezes lava as mãos, então será por certo também este o povo que mais vezes as tem sujas. Contudo, por mais cautela que uma pessoa tenha, por mais que te tente esgueirar destas coisas que nos emporcam as mãos, não há vida que assim se chame que não se depare por vezes com uma ou outra situação de sujar as mãos, mais não seja no sentido figurado da expressão. Desta forma, chegou-se à conclusão que no meio da lista, que é sempre o lugar onde está a virtude, é que deveria constar o nome deste país. Habituados a isto de estar sempre entre as marias, nem muito para lá nem tanto para cá, assim querem permanecer para passar despercebidos entre os demais, que não se destacam nem por estarem em primeiro, nem por estarem em último. O povo voltou a dormir descansado por uma vez. Não se sabe porém como tinham as suas mãos.

Alexander Search

Havia de morrer em Lisboa um jovem poeta. Regressado de Durban fazia apenas três anos, e desembarcando na melancólica capital da saudade, Lisboa, este varão de instrução à inglesa, um verdadeiro gentleman, não durou o tempo bastante para percorrer todos os recantos daquela cidade sobre o Tejo que o vira nascer anos antes. Os breves anos que por aqui estivera não fizeram antever a vasta obra que deixou. Corria lento o ano de 1908 quando, em fevereiro, morre Alexander Seach. Moço de estatura média, fácies clara, que aparava a pouca barba que lhe começava a aparecer no queixo, e com um caminhar, impaciente e desassossegado, como se a tenra idade já tivesse posto nele tamanha amargura e ímpeto esforço. Sofreu como quem vive, não viveu senão o que de mais sincero há no mundo, a dor, o ódio, a luxúria e o medo. Por várias vezes trocou correspondência com o seu amigo, Fernando Pessoa, sempre em inglês e coloquialmente bem redigido. Chorou a morte de uma criança, uma imensa mágoa sobre a brisa marítima atlântica, irmã de Fernando Pessoa, Madalena Henriqueta que morreu a bordo do navio durante o regresso a Portugal. On baby’s death. 
Por alguns anos, foi Alexander Search que escreveu todas as cartas, tornando menos iguais e longos os dias de Fernando Pessoa. Sempre em inglês, sempre carregadas de agonia e de um enorme afastamento entre ele e Deus, a Natureza, o Homem. Descontente com estes, havia Search de estabelecer um pacto com o diabo. A dois de outubro de 1907, Alexander Search assina o compromisso e passa para sempre a ser residente no inferno. Primeira condição, nunca esmorecer nem recuar no propósito de fazer bem à humanidade. Segunda condição, nunca escrever coisas sensuais, ou más a qualquer outro respeito, que possam lesar e prejudicar quem as ler. Terceira condição, nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião dificilmente pode ser substituída e que o pobre ser humano chora nas trevas. Última condição, nunca esquecer o sofrimento e o padecimento dos homens. E tudo isto tinha que ver com o inferno. Este poeta e contista tinha um cartão de apresentação. Alexander Search, LISBON, Rua da Bella Vista (Lapa), 17, 1º. À data a rua coincidia com a de Fernando António Nogueira Pessoa. Lisboa tornara-se pequena para estes poetas e para os tantos que viriam a nascer nos anos seguintes. 
Havia de nascer em Lisboa um poeta. Corria já adiantado o ano de 1888 quando, em junho treze, nasce, Fernando Pessoa, no quarto andar de um prédio em frente ao teatro São Carlos em Lisboa. Num outro quarto de um outro prédio nascia, no mesmo dia, treze de junho de 1888, Alexander Search. Dois poetas nascidos no mesmo dia, na mesma cidade e não consta que se tenham conhecido, nem sequer consta que se tenham cruzado durante os primeiros anos de vida de ambos passados ainda na capital portuguesa. Sobre se os passos de Search convergiram em algum momento com os de Pessoa, pouco ou nada pode ser dito. Imaginemos apenas dois poetas que estiveram tão próximos sem sequer saber que o estavam, sem se conhecerem, sabendo apenas que haviam de se conhecer anos mais tarde bem longe do sítio onde nasceram. Antes mesmo de Fernando Pessoa se começar a interessar pela literatura, já Alexander Search se interessava pela filosofia hermética. Escreveu sobre Alberto Caeiro. Um mestre. Search queria para si a filosofia de vida que Caeiro dizia não ter. Alberto Caeiro nasceu a dezasseis de abril de 1889, no ano seguinte ao do nascimento de Alexander Search. Os poetas presentes não duraram muito. Caeiro morre aos vinte e seis anos. O seu percurso ficou a meio. Dizem que só assim se conquista a eternidade, ficar a meio, não findar, deixar para um outro o misticismo de um poeta que não acabou.