Faca e Garfo

Aparentemente não há nada, intrínseco a cada objeto, que lhe confira um determinado género. Não há nada numa cadeira, isto é, no objeto físico e não na palavra, que a torne feminina, assim como nada há em teto ou chão que tornem estes masculinos. Aliás, a estes últimos, teto e chão, bastará, por vezes, uma mudança de perspetiva, para que possam ser chamados de paredes, e estas, caros leitores, já se inserem no domínio das palavras femininas. Os nomes que lhes damos podem ser masculinos ou femininos, e logo então, essas coisas passam também a sê-lo. São personificadas por nós, que assim lhe avivamos a existência, não apenas com um nome, que esse sempre o têm, mas sobretudo com um género - para não falar de número, por vezes. Façamos jus a esta nossa língua que permite que assim seja. Outras há, em que toda esta introdução não faria sentido, uma vez que nessas línguas, as chamadas coisas, ou os objetos, não são passíveis de género, como se de seres animados se tratassem. Outras ainda há, que atribuindo género aos objetos, estes variam totalmente da nossa língua portuguesa. Acerca disto, poderíamos pensar se, no nosso imaginário, cada objeto assenta bem, ou se pelo contrário não assenta bem, no género que lhe deram. Claro está, que para algo tão inusitado como são os géneros dos objetos, parecerá difícil dar conta quais as características que possam ser associadas ao feminino e ao masculino partindo apenas do nosso universo, que tantas vezes falha e debruça-se sobre ideias pré-concebidas, - aquelas que vai se a ver e não correspondem de todo à realidade, ou ao que ela seria se todos nós, de quando em vez, não exercêssemos essa pressão, uns sobre os outros - acerca do que é masculino e feminino. 
O caso da faca e do garfo é para mim curioso. São estes, dois dos objetos que mais costumam andar a par, e por norma sempre próximos. Onde vem um, logo surge o outro, ajudando, cada um com a sua tarefa, mas para um objetivo comum. Por algum motivo, fruto da imaginação, e influenciado pelo meio e pelas suas demarcadas posições quanto ao género, sempre associei a faca ao masculino e o garfo ao feminino. Precisamente o contrário do género das palavras que associamos a cada um destes dois objetos. Claro que esta ideia assenta em estereótipos, muitas vezes irreflectidos e arbitrários, que vão como que fermentando em cada um de nós ao longo dos anos. Como disse anteriormente, nada há numa faca que a torne, quer feminina, quer masculina. Porém, há algumas características desta que associo ao masculino. A faca é mais comprida do que o garfo e por isso, quando postos lado a lado esta é a mais alta dos dois talheres. Não sendo regra nenhuma, na generalidade das vezes, a altura, é associada ao membro masculino do casal. Pois bem, não com a faca e o garfo, curioso casal, unidos de facto para sempre - matrimónio não sabemos - o que sabemos sim, é que são arrumados nas gavetas, cada um em seu devido lugar, para que misturas não as haja. Por vezes, com as não menos trabalhadeiras colheres no seu meio, mesmo que se tenha convencionado dizer, mais noutros tempos do que no nosso, que entre marido e mulher, não se mete a colher. O garfo, por exclusão de partes o mais baixo, tem os seus três ou quatro dentes apontados para cima, como um verdadeiro tridente em ponto pequeno. São estes que me fazem lembrar os cabelos longos cultivados pelo género feminino mais do que pelo masculino. Não é só a altura que compõe a masculinidade, embora que pretensiosa, que atribuo à senhora dona faca. Dos dois talheres que mais tenho vindo a falar, é a ela que cabe o trabalho de cortar e serrar, exigindo de nós a maior força motora. Pois bem, nesta altura já não parecerá estranho afirmar que, também esta característica se associa, assumo que de forma errónea, mais ao universo masculino, mas à mesa, esta tarefa compete à dona faca. Depois desta fazer o trabalho pesado, ao senhor garfo cabe a tarefa mais prazerosa, e também mais fácil diria eu, de fazer chegar a comida à boca.
No final de contas, faca e garfo seguem cada um para seu lugar, na gaveta de onde outrora saíram, e de onde vão voltar a sair em breve. Tanto estes dois talheres, como os seus parentes próximos, de cabo de madeira e serrilhada, são um bom exemplo para a desconstrução de estereótipos associados ao género.


História do Príncipe que Colecionava Bichos

Era uma vez um castelo rodeado por altos muros. Eram tão altos que, da janela mais alta, do andar mais alto, da torre mais alta só havia luz por alguns instantes em todo o dia. Tudo o resto era sombra, sempre sombra, uma penumbra tal que quase não se distinguia o dia da noite.
Todos no castelo tinham medo do que estava para além dos muros, e embora nunca ninguém tivesse ousado atravessá-los, contavam-se histórias de grandes tormentos e lendas dos enormes bichos que viviam para lá das muralhas do castelo. O medo tomava conta daquela gente.
Perdera-se a conta aos anos que passaram, desde o arremesso da primeira pedra, que viria a fortificar todo o castelo. Daí em diante, vários reis tinham liderado e protegido o reino das muralhas. O mais novo de toda a família real era o príncipe Joa. Com a sua tenra idade, ainda tinha curiosidade de saber o que havia lá fora, no horizonte e para além dele. Todos os outros, por entre histórias tenebrosas e incitações ao medo, acabaram, mais tarde ou mais cedo, por perder essa ideia da sua cabeça.
Um dia, ou noite, Joa volve ao terraço do castelo. Não era frequente ali estar por ser o lugar mais sombrio e destinado ao povo. Com as mãos, foi seguindo pelo muro fora tentando imaginar aquilo em que estava a tocar. Eram pequenos e redondinhos, pensou ele quando duas coisas minúsculas lhe foram parar à palma da mão.
Subindo as escadas de duas em duas, depressa chegou ao andar mais alto do castelo. Só lá conseguiria ver o que tinha encontrado. Com a pouca luz distinguiu uns bichos que se enrolavam e andavam ao redor da sua pequena mão. Com medo, depressa os sacudiu.
Seriam aqueles os temíveis bichos das histórias? Aquilo inquietou o pequeno príncipe, que desde então não pensou em mais nada. 
Todos os dias ia colecionando bichos. Deixou de lhes ter medo. Eram compridos alguns, outros não. Alguns tinham mais de oito patas e outros asas. Começou por separá-los em caixinhas, e depois a dar-lhes nomes. 
Continuou a ouvir, por muito tempo as histórias que todos contavam sobre as criaturas que rodeavam o castelo. Já não acreditava nelas. Parecia, que com o passar do tempo, as criaturas dos contos ficavam ainda maiores e mais temíveis. Uma ameaça crescente para todos eles, embora o castelo nunca tivesse sido atacado antes. 
Quanto mais tempo passava a colecionar aqueles bichos, mais se interessava por eles. Pensou em como nunca tinha visto os bichos das histórias, colossais e ameaçadores, e em como nunca lhe tinham falado dos bichos que ele já tinha visto.
Joa interrogou-se se as muralhas protegiam aquela gente das criaturas de fora, ou se protegiam as criaturas de fora das tolices e loucuras daquela gente. Sem pensar muito, libertou todos os bichos das caixas. Alguns voaram para além das muralhas, outros esconderam-se nos muros.
O Príncipe Joa deu àquelas criaturas, a liberdade que ele próprio não tinha. Dentro das muralhas a sombra e a escuridão perduraram. Quanto aos bichos, esses viveram felizes para sempre.

Romanesco

Não tenho por hábito comer objetos de estudo. Sem dúvida uma bela maneira de introduzir um assunto. Nada melhor do que iniciar uma linha de pensamento com uma conclusão absurda. Não, não tenho esse hábito, porque esses, os objetos, foram sendo arranjados e feitos para um propósito muito específico - o estudo - e não para saciar ou satisfazer as necessidades tão somente fisiológicas de um humano. Confundir estes dois propósitos parece, num primeiro momento, estapafúrdio. Ainda para mais, quando desde pequeninos  somos ensinados que com a comida não se brinca. Por certo esta lição deve estar sempre presente, de acordo. Mas, assim sendo, como poderia então eu brincar com comida? Não se trata de brincar, de uma maneira convencional, como faríamos com tudo aquilo que é tipicamente de brincar, onde não se incluem estes objetos que poderiam muito bem figurar numa obra de arte de natureza morta. 
Tudo isto surgiu na minha cabeça quando olhei para uma couve romanesca. Não querendo saber do seu calibre, ou de qualquer outra característica que fariam de mim imediatamente um potencial comprador, concentrei-me noutra particularidade. Não teria de ser esta variedade em específico, uma vez que não só esta partilha desta característica, mas, nenhuma outra há que seja tão esteticamente atraente como a romanesca – as outras couves que me perdoem. 
A característica de que falo é a sua infinita repetição. Não se assustem aqueles que, por repetição, entendem que esta passará a constar, invariavelmente, nas sopas e saladas e que o seu fundo não se esgota. Não se trata, pois, de um recurso inesgotável. A sua teórica infinidade está confinada à sua área de superfície, e essa, é finita. A couve romanesca é um exemplo evidente de fractal. À parte outros que aparecem na natureza de forma mais subtil, no romanesco esta propriedade, - que não consta na tabela nutricional, mas que é conhecida noutras áreas, - é flagrante. Por certo não interessa ao consumidor comum esta propriedade mais do que a quantidade de proteínas ou de caroteno presentes nesta planta hortícola.
A sua forma espiralizada denuncia a simplicidade, e ao mesmo tempo complexidade, ou, por outras palavras, preguiça, da disposição natural das coisas. Trata-se simplesmente de uma cópia, uma repetição organizada da mesma forma geométrica.
Como quando cortamos brócolos e ficamos com partes mais pequenas do que a inicial, mas com a mesma forma. Caso evidente onde uma teoria matemática pode ser facilmente compreendida com um exemplo concreto, num contexto real. 
Provavelmente é isso que se encontra em comum no romanesco e nas obras de Pollock. E é também isso que se encontra em comum entre os consumidores de um e os primeiros críticos à obra de outro, não viam mais do que, um alimento no primeiro caso, e uma tela salpicada com tinta no segundo.