Que Trinta e Pico

Desde há milhares de anos que a humanidade tem vindo sendo confrontada com uma questão que irremediavelmente tem sido deixada para as gerações futuras. A evolução poderia ter sido abreviada até aos nossos dias caso alguém tivesse avançado uma resposta fundamentada e tida como válida. Não menospreze esta reflexão, trata-se de um assunto importante e de alguma urgência. Afinal, que horas são 7 e tal? E qual é mais tarde, 7 e pouco, 7 e tal ou 7 e pico? É disto que se trata. Será o "tal" mais 2 ou 3 minutos que o "pico" ou vice-versa? Quão "pouco" são 7 e pouco? Chegarei atrasado se chegar às 7 e tal, se estava marcado para as 7 e pico? É obviamente necessário despenalizar todas as civilizações que utilizavam o sol como relógio. Eu compreendo que não deveria ser fácil apresentar com precisão os minutos decorridos após hora certa com apenas um ponteiro. A esses e aos demais que utilizaram métodos rudimentares semelhantes não será dado um "puxam de orelhas". Para aqueles que, tal como nós, já nasceram no tempo dos relógios de engrenagens, com dois ponteiros e numerados de um a doze, não pode haver desculpas. Mas, afinal, será "pico" menos que "tal" e mais que "pouco"? Bem, ninguém poderá dizê-lo com certeza, pelo menos enquanto não quantificarmos termos não quantificáveis. Nesta linha de pensamento poderemos perguntar de onde vem a expressão "que trinta e um". Terá sido um dia 31 muito atribulado? Ou terá sido alguém que fez + 1 do que trinta por uma linha? Tudo boas perguntas, ao qual também não posso evidentemente responder. Voltemos às 7 e "tal, pouco e pico". O uso de termos como 7 e tal ou 7 e pico, na minha opinião, deve sim ser usados para apresentar uma estimativa da hora, como forma de expressar a nossa incerteza. É de evitar usá-los para apresentar uma hora mais exata principalmente quando hoje os relógios digitais já ocupam os pulsos alternadamente com os clássicos relógios analógicos. Embora muitos destes últimos já não sejam numerados a sua leitura das horas permanece acessível. Para não falar na crescente tendência de desprezar o relógio para ver as horas e utilizar o telemóvel, como de resto para quase tudo. E se nem assim nos damos ao trabalho de ler prontamente as horas, isso é que é um grande trinta e um!

Aldrabar um Puzzle

O maior problema ao montar um puzzle de 1500 peças que, assumo, não é dos maiores que se encontram por ai, são os sábios comentários dos que estão de fora, apenas a assistir. Desenganem-se os que pensavam que o problema residia na dificuldade em encontrar as pequenas peças e conseguir encaixá-las. Olhar para os encaixes da peça, remexer no monte desordenado da caixa e olhar novamente para os encaixes. Separar as peças retas das extremidades para formar a moldura do puzzle. Uma vez que isto de montar um puzzle é moroso para qualquer amador, completamente leigo na matéria, são apresentadas alternativas para que, não fosse isto de montar um puzzle num digno período de tempo, apenas obra de quem resolve um cubo de Rubik em segundos. Ora, o que levaria alguém a tentar acelerar um processo que se quer que tome o tempo que for preciso? Não se sabe. Provavelmente a nossa necessidade de acabar uma tarefa o mais rápido possível. E de aldrabar a sua resolução sempre que folga houver para isso. Quando estamos a ler um livro que nos está a dar um grande gozo ler, queremos lê-lo rapidamente para deslaçar a trama, porém com a noção de que quando acabar não haverá mais para gozar. Um entretenimento que tem, como todos os outros, o objectivo de ocupar o tempo, e ocupá-lo o mais possível e da melhor forma, é aldrabado por nós que constantemente queimamos etapas. É sugerido que, para tornar mais fácil a busca pela única pecinha capaz de encaixar num determinado sítio, todas as peças deveriam estar numeradas no verso. Por cima do cartão azul que forra a peça era de facto preciso uma numeração. De 1 a 1500 numa numeração mais simples, coordenadas tipo batalha naval, em função do formato, uma vez que em regra em cada puzzle existem duas peças exactamente com a mesma forma, admitindo que este último para experts. É curioso como esta sendo uma ideia que tenta facilitar a resolução de um puzzle, acaba por não facilitar muito. Entre procurar uma peça de entre centenas pelo seu aspecto e procurá-la pelo seu número, não sei qual a melhor. Uma coisa é certa, de qualquer das formas o entretenimento estava garantido, deixava de se montar um puzzle e passava-se a jogar uma versão alternativa do bingo. É uma questão de escolher!

Charlie

Numa semana marcadamente sombria para a liberdade de imprensa, com a perda de cartoonistas que no fundo eram activistas pelos direitos fundamentais como é o direito à liberdade de expressão, o mundo reflecte sobre se de facto todos temos esse direito, de pensar e de nos expressarmos segundo as nossas convicções. É óbvio que não. O que existe na constituição falha redondamente na prática. Quando, na quarta-feira ecoou por todo o mundo a frase “Je Suis Charlie”, “Eu Sou O Charlie”, em português, esta estava muito mais próxima de ser apenas uma sincera homenagem e um pedido de desculpas pela nossa intolerância face a cartoons ditos exagerados do que transmitir a ideia de que todas as forças do nosso ser apoiam e enaltecem constantemente este e outros direitos fundamentais. A verdade é que usando da nossa liberdade de expressão fazemos reduzida a de um outro por considerarmos a sua – liberdade de expressão - ofensiva para alguém. Torna-se vicioso. O que há num Charlie? Não pode haver medo. Há riscos, mas a própria liberdade é um risco. Já estavam em ascensão, em alguns países da Europa central, partidos da extrema-direita. Começou a ser notícia generalizada depois de em maio do ano passado, a Frente Nacional ter sido o partido mais votado em França para o parlamento europeu. O semanário constantemente ridicularizava Marine Le Pen, presidente do partido e filha do primeiro dirigente do mesmo, que não tenho dúvidas, vai aproveitar este momento de fragilidade social para subir nas intenções de voto pela Frente Nacional. Este ato tornou-se portanto uma violação da liberdade de expressão e também um atentado contra os próprios terroristas e que infelizmente também se reflete naquela que é a maior comunidade islâmica a viver na Europa. Acredito que este seja um momento particularmente difícil para todos os muçulmanos residentes em França que não se revêem de modo algum no atentado ao Charlie Hebdo. Porque se há coisa que os imigrantes em Paris ou em qualquer outra parte do mundo, sejam eles de que religiões forem, podem ter a certeza é que estarão seguros enquanto houver sátiras e liberdade para as fazer como houve até agora no semanário Charlie Hebdo. Também é por isso que o semanário faz questão de mostrar que essa liberdade vai continuar com 1 milhão de exemplares nas bancas já na próxima semana. A mensagem é simples, todos têm direito à liberdade de expressão, não nos podem reprimir, e lembrem-se que a nossa liberdade é também a vossa!

Tortura de Dentista

Sempre que vamos ao dentista, estamos a pactuar com a tortura indiscriminada que esses profissionais da saúde praticam. Não me refiro ao medo que o paciente possa ter por uma ou outra ferramenta que é usada durante a consulta. Ainda que pareçam assustadoras, acredito que nem mesmo um alicate, uma sonda ou até uma broca sejam tão subversivos. A verdadeira tortura começa já a consulta tem por norma começado. Depois de uns instantes confortavelmente reclinado - embora que tenso - na cadeira de dentista, surge o primeiro avanço do que se tornará uma conversa. E como em tantas outras ocasiões, a meteorologia é um dos temas verosímil a debate. E é neste ponto que as coisas se tornam diferentes, na medida em que este debate assemelha-se mais a um monólogo do que a uma conversa ponderada onde se discutem pontos de vista diferentes mas sobretudo pontos de vista semelhantes. É de facto uma tortura quando estamos completamente impotentes e não somos capazes de responder e argumentar contra algo que nos é dito. Minto. Podemos alegar que "haaaaaaaaaaaaaaa" ou "eeeeeeeeeeeeih" que, tendo em conta a nossa situação tornam-se ferramentas valiosas. Levantar a mão esquerda se estiver a doer é um método de comunicação necessário e útil obviamente, mas insuficiente tento em conta a complexidade dos temas que muitas vezes são debatidos. A verdade é que nem os dedos dos pés chegariam para expressar tudo aquilo que facilmente expressamos verbalmente. Há uma espécie de contrato, que não existe fisicamente, estabelecido entre o paciente e o dentista. A nossa liberdade de expressão é nesta situação menosprezada e no entanto pactuamos e estamos completamente de acordo com isso uma vez que se trata de um serviço. E, na generalidade a sociedade aceita que assim seja. Os que não, podem gabar-se disso mas certamente terão tártaro acumulado entre os dentes. Temos perfeita noção de quando é legítimo privar alguém desta liberdade e sobretudo de quando não é, - na maioria das vezes que estamos para lá de um consultório de dentista. Devíamos aprender mais com uma destas visitas que faz parte do quotidiano, - embora que muitos tentam evitar. Por vezes as ferramentas que eles usam provocam sofrimento, e no entanto temos consciência de que nos estão a prestar um serviço do qual sairemos beneficiados! É uma alegoria para pensar.