Vi-te no Deserto a Voar

Escolhi uma história do meu percurso recente! Espero que, não porque a minha memória me atraiçoa para acontecimentos quotidianos com cinco ou mais anos, mas, na esperança de que esta história que agora perpetuo no papel se torne numa boa lembrança daqui a umas décadas. Estávamos em julho deste mesmo ano quando eu, pela primeira vez no meu percurso pessoal, colaborava de forma prolongada com uma associação de educação pré-escolar com inspiração na pedagogia waldorf. Fiquei surpreendido quando visitei o espaço pela primeira vez. Era diferente da realidade que há uns anos atrás me tinham proporcionado enquanto criança. Não conhecia as bases deste método pedagógico, mas tive enorme vontade de o conhecer e de perceber a razão da sua - vim mais tarde a saber - grande popularidade no que diz respeito aos métodos alternativos de educação. Talvez por esse motivo me tivesse encantado particularmente aquele lugar com um toque mágico, lugar de duendes e fadas, onde a comunhão e o respeito pela natureza eram primordiais e onde se sentia uma paz e uma tranquilidade que deveriam ser, sempre, ambiente de eleição para a educação de uma criança – e de qualquer pessoa. Fui aprendendo algo novo a cada dia, como se recolhesse pequenas pistas para aquilo que Steiner tinha formulado uns largos anos antes numa fábrica de cigarros na Alemanha. Era como se, tal como cada uma daquelas crianças, eu próprio estivesse a apreender um mundo novo a cada instante. O espaço dava-me muita informação sobre a pedagogia waldorf, infelizmente não conseguia descodificar grande parte dela sozinho. Soube, mais tarde, que os suaves tons de cor-de-rosa que preenchiam grande parte das cortinas, panos e tapetes do espaço eram propositados. O cor-de-rosa é a cor da primeira infância por desencadear processos cerebrais adequados aquela faixa etária. Os bonecos não tinham expressões faciais bem definidas para que as crianças estimulassem a imaginação e dessem mentalmente expressividade ao boneco com que brincavam. Nada naquela sala estava disposto ao acaso a não ser os brinquedos de feltro, lã e madeira dispersos pelo chão depois das brincadeiras. No exterior, árvores de fruto com borboletas de feltro penduradas, uma rede de pano para baloiçar, um espaço com relva que transporta consigo a liberdade de uma criança a correr, a saltar, ou a fazer castelos na areia e na terra. A liberdade de uma criança que bule em tudo e procura descobrir a textura das coisas, o seu paladar, o seu cheiro… 
Durante a brincadeira um dos meninos diz-me, Eu já te conhecia. Do deserto. Pus-me de imediato a pensar porque se teria ele lembrado de um lugar tão inóspito para me ter conhecido. Seriam as influências do Macário Dromedário ou teria aprendido aquela palavra num dos dias anteriores? E, no momento seguinte reafirma, Vi-te no deserto a voar.
A partir desse momento, - mesmo não compreendendo a razão para ele me ter conhecido no deserto - percebi que aquele seria provavelmente o melhor sitio para se guardar memória de alguém.

Passado no Presente

Séculos de história como espécie, deixaram um rasto amplo de descobertas, progressos e pensamentos que se foram impondo. Como é dito triunfalmente na ode, redundância cantada e escrita num jato e à maquina de escrever por AC, o passado está dentro de nós e todo o futuro também já está dentro do presente. De facto, aquilo que somos no presente é o reflexo mais evidente do que fomos no passado. Não somos estrelas, não no sentido literal, mas, da mesma forma que ao olharmos para o céu estamos a ver, não o presente, mas o passado, o mais vulgar objeto, mesmo que aparentemente digno de que o invoquem pela abreviatura de cristo e repleto de contemporaneidade, tem uma história para contar que nos remete para o passado. Pode ser difícil compreender que o melhor museu sobre o passado é o próprio simples e alcançável presente. A realidade atual é essência autêntica de um passado mais ou menos distante. O presente - por abarcar também o passado - reconhece apenas um pretérito, o imperfeito. Um pretérito continuado que se prolongou até ao presente. Desta forma, somos um espelho do passado e um reflexo, se tal metáfora puder ser assim usada, do futuro. Como o passado é parte fundamental do que somos hoje, o presente, por sua vez, é já parte irreversivelmente importante do que será o futuro.
É a partir deste ponto de vista transversal a épocas e eventos, e que despreza a orientação no tempo, que surge a triste, mas real constatação de que existem múltiplas estruturas análogas na dicotomia passado-presente. Continuamos a assistir aos jogos nos coliseus do império romano, com as multidões a vibrar com a glória ou fracasso dos guerreiros, agora chamados de estádios de futebol e sem que se atirem pães para as bancadas. Mudam-se os tempos, permanecem algumas vontades. E mesmo sendo todo o mundo constituído de mudança, há coisas que teimam em não mudar. Sobre estas semelhanças há essencialmente duas coisas a reter. Note-se que os mesmos princípios poderiam ser aplicados a toda e qualquer coisa que tenha perdurado no tempo sem que as mais divergentes teorias e movimentos as tenham abalado o suficiente. A primeira é que, passados uns largos séculos, com todos os seus acontecimentos peculiares, onde se viu gente espantosa nascer e morrer, onde se assistiu a eclipses lunares embora conhecidos por outros nomes, onde se enfrentaram invasões e se viram monarquias a serem depostas, este modelo de espetáculo continua a ser largamente apreciado em todo o mundo e a juntar multidões. Outros espetáculos há, que de forma menos ou mais profana também conseguem fazer chegar até si e são por sua vez demonstrações de uma dinâmica de grupo muito curiosa. Perdurou até aos nossos dias como lembrança viva de um modelo que já era tido como capaz de assegurar tempo de qualidade a uma larga audiência. A segunda, em consequência da primeira, faz-nos perceber o porquê de tal ter subsistido, - certo é que com as mudanças que as décadas foram impondo - até aos nossos dias. Se este modelo continua a guiar e, quase que a comandar o comportamento de um grupo alargado de pessoas, pode ser usado para os mesmos fins que eram usadas as arenas na antiga Roma. A César o que é de César!

Apontamento sobre Refeições

Não ter televisão é um bom indicador de que uma refeição pode correr bem. Na verdade, uma televisão à mesa pode ser (ou já será mesmo) a intromissão mais subtil a que o ser humano já se encontra plenamente habituado. De mansinho nas salas, nas cozinhas e noutras divisões da casa, a televisão ocupa um lugar cativo que já só a ela pertence e que não se deixa facilmente substituir, a não ser pelos seus pares mais pessoais, telemóvel, tablets, que embora sejam aparelhos dados às comunicações, só vieram, contrariamente à função para o qual foram criados, dificultar uma comunicação fluida e um diálogo à mesa. Quanto à televisão, já não questionamos a sua presença, notamos pois a sua falta. Não nos incomodamos com o barulho dela por cima da nossa voz, notamos pois se estivermos a falar com plena ausência dos ruídos produzidos pela chamada caixa mágica. Gostamos de falar por cima dela, sobrepondo a nossa voz como uma autoridade. Algo que está tão intrinsecamente presente que diferente e estranha é uma realidade sem ela. A televisão tem vindo incessantemente a conduzir as conversas durante as refeições. Se idealmente a hora das refeições servia para conversar em família, com televisão essa conversa, que naturalmente continua a acontecer, é conduzida de uma determinada forma, mediada pelo conteúdo televisivo, sem que sequer demos conta. E mais do que isso, tem sido, não raras vezes, inanimado, estático, fixo, e ainda assim deixamos que seja este o único corpo com voz, que tome a palavra que deveria ser, por direito, nossa. Sejam elas mais pequenas, em formato de caixa, maiores, ou mais finas, vieram todas, por sua vez intrometer-se nas refeições à mesa. Como um de fora, que tem as suas histórias para contar e para partilhar.

Língua

Há uma língua portuguesa que não é falada por ninguém. Uma língua portuguesa padrão e regida por convenções bem definidas. Apesar disso, a língua portuguesa expressa-se de tantas maneiras diferentes, quantas as pessoas que a falam. São aproximadamente onze milhões de diferentes manifestações do português, língua oficial, só em território português. Nenhuma delas pode ser considerada errada, tão-pouco nenhuma pode ser hierarquizada, todas são válidas, corretas e objecto de estudo, e contudo, não há uma só que obedeça a todas as convenções da gramática do português padrão atual. Por outras palavras, não há ninguém que sempre respeite todas as regras de escrita e oralidade da língua. Este conceito de desrespeito e infracção às normas linguísticas, não é exclusivo dos falantes da língua portuguesa. Não é característica única deste povo a rebeldia latente em desobedecer à gramática portuguesa. Nada faz dos portugueses mais indisciplinados do que os demais povos. De facto, não há uma única língua que seja falada, em toda a sua plenitude, segundo convenções pré-estabelecidas. Esta quebra generalizada entre teoria e prática é do conhecimento de linguistas e está também muito presente no senso comum, na conceção generalizada de gramática e oralidade. Apesar de não existir uniformidade na expressão e escrita do português, as diversas formas de expressão existentes são essenciais e preciosas para que a língua continue constantemente a evoluir. Não obedecer a todas as convenções gramaticais é normal, e espante-se, se lhe disser que, os agora considerados poetas maiores e grandes escritores da língua portuguesa, também em seu tempo desobedeceram e suplantaram regras então tidas como as únicas gramaticalmente aceitáveis. Todas as regras gramaticais da língua não passam de convenções temporárias, frágeis e passiveis de mudanças, que estão em constante alteração, não havendo maneira de as impedir. Essas mudanças são ditadas pelos falantes. A língua tem as suas regras assentes na expressão oral e escrita, e consequentemente, são os falantes que moldam as regras da língua e não o contrário. A língua sofreu diversas alterações ao longo dos séculos. Não se entenda o emprego do verbo sofrer como algo doloroso e angustiante. Na verdade, a língua não sentiu nada disso. Quero dizer que essas alterações são normais, e continuarão a ocorrer, mesmo que o mais patriota dos portugueses a tome como uma afronta a um dos maiores símbolos da nação, a língua.

Personagens

Há esperança que um dia todos estes seres criados, e criados no sentido de concebidos e de servos, se levantem e se apresentem em tão familiar ambiente. Que se ergam lá do sítio onde estiverem e caminhem entre nós como até agora o têm feito, não tão raras vezes e de forma mais ou menos impercetível. São eles os muitos e as muitas com ou sem nome que nos invadem sem existirem, existindo tão-somente em nós. Que particular espécie de parasitas que se nos entranham e vão dando sintomas de nos possuírem mais do que de nos pertencerem. A sua quase existência confinada a páginas impressas e a manuscritos transforma-se progressivamente numa existência vária, múltipla, que toma lugar em numerosas criaturas. Somos nós, os carrascos desta sentença, a lenha desse fogo. Meros escravos por haver, que serviram outrora a quem os criou, e que vão subtilmente escravizando quem os lê. Que seja um descargo de consciência usar estes seres criados como marionetas dos seus criadores, para afastar de cabeças tolas a ideia de que, criador e criação partilham afinal as mesmas ideias. Se for esse o caso, que se ponha quanto de perigoso pareça existir para nos corroborar ideias e pensamentos embrionários em personagens fictícias que garantam o afastamento necessário entre o inventor de pensamentos perigosos e aquele que transmitirá tal ideia como sendo sua. Nada existirá de físico em transmitir uma ideia nem em retê-la na memória. Personagens fictícias não são dotadas de palpabilidade nem de uma existência concreta, têm a sua esfera existencial confinada a páginas de livros e à imaginação de cada leitor. De facto, algumas personagens, mais do que se manifestarem em nós, fazem-se ser vistas nos outros. Ainda se vê um Dâmaso Salcede a descer a rua. Acompanhamos uma Madame Bovary que procura a plena satisfação na vida. Observamos um ou outro Napoleão, o porco Berkshire, sempre que uma voz mais altiva e categórica se alevanta. Por esta razão, se julgamos proveitosa a manifestação de algumas personagens em nós, já outras, somente nos envergonham à mais pequena manifestação. As pessoas são personagens tipo que inspiram estas e por estas se deixam inspirar. De uma forma ou de outra todos nós nos identificamos com uma qualquer personagem de novela, romance, conto, drama ou até poesia. Figuras com personalidade, sem carne nem osso, mas com uma existência ampla. São eles que nos desassossegam e nos mudam. São eles que nos perturbam e ainda assim é a eles que dedicamos grande parte do tempo. Um masoquismo da alma que se torna difícil compreender. Mesmo em pleno processo de parasitação, ficamos agarrados a tais criaturas sem rosto nem identificação fiscal. Não nos desprendemos deles, andam sempre connosco. Uma multidão imensa, que cabe em nós.

Crença

Um escritor português disse um dia, "(...) o planeta seria muito mais pacífico se todos fôssemos ateus." Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar como eu sou. O planeta seria muito mais pacífico se todos tivéssemos as mesmas crenças. Tanta gente se diz fazer isto e aquilo, tantos os que correm demasiado, que são sublimes só porque o são, que se deixam viver triunfantemente e aparentam nem dar conta disso. Galopantes como cavalos de corrida, bustos de corpo e vaidosos porque o são por natureza. Mas afinal, onde estão os fracos, onde vivem os cobardes, aqueles que passam sempre à margem disto e daquilo e que vão admitindo fazer aquilo a que alguns convencionaram chamar de blasfémia. É senão blasfémia bastante não admitir que qualquer um, por mais beato que seja, pratica blasfémias várias. Fórmula irredutível para o bem estar comum que não me satisfaz por completo mas que escrito, não serve para refutar a primeira afirmação mas para generalizar aquilo que poderia ser entendido como a ausência de diversidade de ideologias, um dos poucos caminhos para a tão procurada paz, e como parece ser inato à nossa espécie divergir com a diferença, não se diz que, O mundo seria muito mais pacífico se todos fôssemos tolerantes, tomássemos o diferente como igual, mas sim se todos fôssemos mais ou menos parecidos, que as diferenças por irrelevantes ou pequenas, fossem sempre tidas como benéficas e nunca como motivo de segregação. A ideia de ausência de ideias não me pode agradar em momento algum. Muito pérfida seria esta espécie se apenas estivesse em paz na ausência de diversidade e de crenças variadas. É humano demais ter fé e acreditar em transcendências e ver esperança em coisas não visíveis aos olhos humanos. Pensar é ser crente, que não há outro bicho que se aventure nestas andanças de ser mero joguete às mãos de um deus do qual pouco sabemos. Felizes daqueles que não se preocupam com estas questões. Que vêem no tempo, não mais do que o próprio tempo e que aceitam uma boa colheita, não por mão de deus mas porque se reuniram as condições para que a colheita fosse boa. Procurar um caminho, uma doutrina que nos diga afinal o que cá andamos nós a fazer, mesmo que esse caminho seja apenas uma possibilidade de entre vários caminhos, caminhos imensos que podemos considerar infinitos, mas que nem disso temos total certeza. Negar a fé que há em nós é tirar do homo sapiens sapiens quanto de humano se diz haver nesta espécie. Muito pouco seremos sem isso. Quando alguém se diz sem-deus, deixa num completo vazio a necessidade insaciável e quase carnal de acreditar nalguma coisa. E que tantos sem-deus fazem deuses seus outras tantas realidades mais ou menos palpáveis? Religiões fazem-se a um ritmo vertiginoso, num tempo em que se deixou de usar a palavra heresia. Caiu em desuso, - e bem -, esta e tantas outras que não têm hoje utilidade senão para as páginas dos grandes volumes da história mundial. Religiões fazem-se em estádios, em praças, auditórios, salas de aula e em tantos outros sítios. É um credo cada vez mais comum achar que são perigosas todas as crenças dogmáticas. Aquelas que enfileirem punhados de gente em direção a alguma coisa que não se sabe muito bem o que é. Mais perigoso ainda é não ver que essas tais crenças vão para além das paredes de qualquer edificação onde se diz ser a casa de um tal deus, todo-poderoso, divino, altíssimo, supremo e quantas características não humanas lhe pertençam só a ele. Crenças nascem em qualquer lugar, e nem sempre se lhes está associado um deus, será talvez este o maior perigo. Se temos religiões em forma de deus ou deuses, temos muitas mais que não se denominam assim mas que são na sua essência, iguais às tantas outras. E agora, onde está deus?

Dia de Reis

Não me puseram o nome Baltasar. Não me puseram o nome Gaspar, nem ousaram chamar-me Belchior. Vieram os três por sua ordem, cada qual com um presente para oferecer ao recém-nascido menino que havia despertado tal curiosidade aos reis magos. Passou a ser para sempre o dia de reis aquando da sua chegada, contavam-se seis dias do começo do ano. Acaso havia eu de nascer nesse mesmo dia, uns tantos séculos depois, dia seis de janeiro. E porque já se convencionou, por ocasião ou bom costume, por um nome alusivo ao dia de nascimento, eu poderia muito bem ser hoje homónimo de um desses reis, Gaspar, Belchior ou Baltasar. Desprezando regras e convenções do registo civil deste país que para efeitos de comunhão consideraremos que aceitariam qualquer um destes nomes. Também não me puseram o nome Reinaldo. Embora não conste que este dia seis se tenha assim chamado por obra de um Reinaldo, o prefixo rei que este nome tem o privilégio de possuir é por si só tentador. Indo ainda a outros reis, que não os magos, deste pais ou de outros, de agora ou de outrora, de qualquer dinastia, reais ou ficcionais, fica a lista de possíveis nomes bem mais extensa. Um enorme rol de Henriques, Joões, Sanchos, Pedros, Migueis, Filipes, Artures, Fernandos, Davides, Franciscos, Luís ou Carlos. Juntando os fictícios aos reais, Joffrey, Tommen, Robert ou Stannis. Ainda assim havia de ser outra a inspiração do meu nome resultado de influências do qual a existência eu próprio desconheço. Não remontaram a um tal poeta da escola de Epicuro e de Zenão de Cicio, médico que nunca exerceu, latinista de formação e amante da cultura clássica. Não me puseram o nome de Ricardo. Não o nome dele nem o próprio nome, que em verdade os poemas de Ricardo Reis não foram escritos por ele mas antes por alguém com o mesmo nome, como faz por explicar uma das leis de Murphy. Havia de ser outra a inspiração para o meu nome...