Alegoria do Lava Mãos

Os entendidos diziam que não havia gente que mais as mãos lavasse do que esta. Corria então a notícia assim como a água que corria das torneiras para amaciar e lavar as mãos com o auxílio do sabão natural e de outros produtos. Eram estes os mais lavadeiros, aqueles que mais vezes faziam chegar a corredia água às tão carentes mãos. Gabavam-se uns por tão merecido reconhecimento nisto que respeito diz à higiene pessoal, pelo menos quando das mãos se fala, que são por certo a mais exposta e suja parte do corpo desta espécie. E como é característico deste povo já desde os primeiros tempos de civilização, o cumprimento é feito com um sociável aperto de mão. Embora não haja memória que por suja ou mal lavada mão se tenha deixado o cumprimento por fazer, estas querem-se limpas e tratáveis, mesmo que muito alegórico seja repartir a porcaria das mãos como se partilham tantas outras coisas. Que asseadas gentes e de bons costumes que prezam umas mãos bem lavadas que se possam apertar. Levantaram-se então outras vozes que não faziam grande este hábito de lavar as mãos. Argumentava o povo que se as mãos eram muitas vezes lavadas é por certo porque muitas vezes estavam sujas também. Porque sempre a necessidade fez a ocorrência e não seriam estes parvos ainda para com uma mão lavar a outra, e juntas se lavarem uma à outra, estando estas tais mãos já limpas. Instalou-se a discussão naquela terra. Se uns diziam que lavar muitas vezes as mãos era sinal de mãos não raras vezes sujas e cheias de bactérias, outros diziam que só podia ser bom sinal e um costume de se louvar o facto de as mãos serem muitas vezes lavadas. Rapidamente todos tinham opinião sobre o assunto. Para uns, que não viam motivo de exaltação popular num reles assunto de mãos e de água - que lhes tragam antes o vinho -, tudo isto não passava de um bom tema de conversa para chacota e animação. Para outros havia que de extrema importância era apurar o que se andava a passar nestas terras de gente lavadeira de mãos que não se entendia quanto à complacência de proferidas afirmações. Diziam outros que mais valia não se saber de nada disto que o povo sempre está bem quando não é desassossegado com estas questões que são questões que dão que pensar. Hesitavam agora uns de toda a vez que queriam fazer chegar água e sabão às mãos. Tornara-se isto de lavar as mãos um ato tão pensado, que já ninguém o fazia indeliberadamente. Chegara-se porém a uma espécie de consenso para apaziguar uns quantos parvos que tinham conflitos vários nas suas cabeças para tentar resolver o tão ignóbil problema popular. Argumentavam então que vistas as coisas como elas são – embora não se saiba como são as coisas para todo um universo de pessoas, cada uma com a sua sina -, estaríamos bem posicionados se estivéssemos no meio da tabela no que diz respeito aos povos que mais lavam as mãos. Parece impossível que não se contente esta gente com, pelo menos uma vez na vida, um primeiro lugar numa coisa qualquer. Se uns diziam que se é este o povo que mais vezes lava as mãos, então será por certo também este o povo que mais vezes as tem sujas. Contudo, por mais cautela que uma pessoa tenha, por mais que te tente esgueirar destas coisas que nos emporcam as mãos, não há vida que assim se chame que não se depare por vezes com uma ou outra situação de sujar as mãos, mais não seja no sentido figurado da expressão. Desta forma, chegou-se à conclusão que no meio da lista, que é sempre o lugar onde está a virtude, é que deveria constar o nome deste país. Habituados a isto de estar sempre entre as marias, nem muito para lá nem tanto para cá, assim querem permanecer para passar despercebidos entre os demais, que não se destacam nem por estarem em primeiro, nem por estarem em último. O povo voltou a dormir descansado por uma vez. Não se sabe porém como tinham as suas mãos.

Alexander Search

Havia de morrer em Lisboa um jovem poeta. Regressado de Durban fazia apenas três anos, e desembarcando na melancólica capital da saudade, Lisboa, este varão de instrução à inglesa, um verdadeiro gentleman, não durou o tempo bastante para percorrer todos os recantos daquela cidade sobre o Tejo que o vira nascer anos antes. Os breves anos que por aqui estivera não fizeram antever a vasta obra que deixou. Corria lento o ano de 1908 quando, em fevereiro, morre Alexander Seach. Moço de estatura média, fácies clara, que aparava a pouca barba que lhe começava a aparecer no queixo, e com um caminhar, impaciente e desassossegado, como se a tenra idade já tivesse posto nele tamanha amargura e ímpeto esforço. Sofreu como quem vive, não viveu senão o que de mais sincero há no mundo, a dor, o ódio, a luxúria e o medo. Por várias vezes trocou correspondência com o seu amigo, Fernando Pessoa, sempre em inglês e coloquialmente bem redigido. Chorou a morte de uma criança, uma imensa mágoa sobre a brisa marítima atlântica, irmã de Fernando Pessoa, Madalena Henriqueta que morreu a bordo do navio durante o regresso a Portugal. On baby’s death. 
Por alguns anos, foi Alexander Search que escreveu todas as cartas, tornando menos iguais e longos os dias de Fernando Pessoa. Sempre em inglês, sempre carregadas de agonia e de um enorme afastamento entre ele e Deus, a Natureza, o Homem. Descontente com estes, havia Search de estabelecer um pacto com o diabo. A dois de outubro de 1907, Alexander Search assina o compromisso e passa para sempre a ser residente no inferno. Primeira condição, nunca esmorecer nem recuar no propósito de fazer bem à humanidade. Segunda condição, nunca escrever coisas sensuais, ou más a qualquer outro respeito, que possam lesar e prejudicar quem as ler. Terceira condição, nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião dificilmente pode ser substituída e que o pobre ser humano chora nas trevas. Última condição, nunca esquecer o sofrimento e o padecimento dos homens. E tudo isto tinha que ver com o inferno. Este poeta e contista tinha um cartão de apresentação. Alexander Search, LISBON, Rua da Bella Vista (Lapa), 17, 1º. À data a rua coincidia com a de Fernando António Nogueira Pessoa. Lisboa tornara-se pequena para estes poetas e para os tantos que viriam a nascer nos anos seguintes. 
Havia de nascer em Lisboa um poeta. Corria já adiantado o ano de 1888 quando, em junho treze, nasce, Fernando Pessoa, no quarto andar de um prédio em frente ao teatro São Carlos em Lisboa. Num outro quarto de um outro prédio nascia, no mesmo dia, treze de junho de 1888, Alexander Search. Dois poetas nascidos no mesmo dia, na mesma cidade e não consta que se tenham conhecido, nem sequer consta que se tenham cruzado durante os primeiros anos de vida de ambos passados ainda na capital portuguesa. Sobre se os passos de Search convergiram em algum momento com os de Pessoa, pouco ou nada pode ser dito. Imaginemos apenas dois poetas que estiveram tão próximos sem sequer saber que o estavam, sem se conhecerem, sabendo apenas que haviam de se conhecer anos mais tarde bem longe do sítio onde nasceram. Antes mesmo de Fernando Pessoa se começar a interessar pela literatura, já Alexander Search se interessava pela filosofia hermética. Escreveu sobre Alberto Caeiro. Um mestre. Search queria para si a filosofia de vida que Caeiro dizia não ter. Alberto Caeiro nasceu a dezasseis de abril de 1889, no ano seguinte ao do nascimento de Alexander Search. Os poetas presentes não duraram muito. Caeiro morre aos vinte e seis anos. O seu percurso ficou a meio. Dizem que só assim se conquista a eternidade, ficar a meio, não findar, deixar para um outro o misticismo de um poeta que não acabou.

Um Bolívar e um Bir Manat

As epifanias vêm sempre depois de um café. Pergunto-me se teria notado se ao invés de um café tivesse sido outra coisa qualquer que não despertasse em mim tal atenção. A história começa quando, depois de tomar o meu habitual café da manhã, recebo algumas moedas como troco, dado o acaso de ter pago com uma nota nesse dia. Estava a coloca-las na carteira quando me apercebo, não pelo tamanho da moeda em questão, quase imperceptivelmente mais larga que o euro, mas muito por causa do desenho da coroa que nunca havia visto em nenhuma das diferentes moedas de um euro que até à data já me passaram pelas mãos. Movido de curiosidade pela novidade, que sempre é a condutora para uma maior atenção, fiz uma análise reforçada do aspeto superficial da moeda. Que bonito desenho na coroa, será uma edição especial de comemoração, pensei. Será certamente uma moeda singular e quiçá uma edição limitada e de coleção. Não era. Não se tratava de uma edição limitada, ou de coleção. Era especial sem dúvida, aos olhos de quem a observava, mas não passava de uma moeda que não o euro e que desde logo me suscitou curiosidade. As semelhanças entre as duas moedas são tremendas, ao ponto de esta passar quase completamente despercebida entre os euros. Talvez o seu brilho metálico, característico das moedas novas, tenha dado destaque ao bolívar venezuelano que eu tinha nas mãos. Não acredito, nem quero acreditar, que tenha chegado a mim porque alguém a tenha propositadamente despachado, e assim fazer gato passar por lebre como popularmente se convencionou dizer. Ainda que assim tenha sido, e embora me pudesse sentir ligeiramente enganado – não desconfiando da inocência de quem fez com que o bolívar me chegasse às mãos -, não consigo contudo sentir-me burlado. Não fiquei com aquela sensação de ter sido defraudado como Calouste quando, para gastar a medjdeh que o pai lhe dera como recompensa pelas boas notas, compra um tetradracma de Mileto. Ainda que tenha feito um bom negócio quando mais tarde o vende por uma libra de ouro, bem mais que um medjdeh, fica a saber que se tratava, não de um tetradracma de Mileto, mas de um tetradracma de Siracusa e que o seu valor era bastante superior ao que lhe haviam dado por ele. Apesar de o próprio Calouste ter trapaceado o primeiro vendedor, ficou muito irritado por terem-no ludibriado a ele. Seria este um dos primeiros indícios dos traços rancoroso e enfurecido da personalidade do mais notável e fascinante membro da família Gulbenkian do qual me confesso profundo admirador. Voltando ao meu bolívar venezuelano, e embora monetariamente esta moeda não valha mais do que uns singelos quinze cêntimos, simbolicamente, para uma pessoa como eu que atribui valor a tudo, ou quase tudo, acaba por valer mais do que o valor com que está numismaticamente cotada. Tem valor por não ter, na Europa, monetariamente valor nenhum. Tem valor por servir meramente para ser contemplada como uma preciosidade, como um objecto mítico tal como aquelas moedas antigas, que já não são usadas em parte nenhuma e que, por isso, se lhes tira de cima o peso do uso corredio, banal e quotidiano que damos às moedas. São relíquias como aquela nota turcomana de um bir manat que exibo orgulhosamente numa prateleira de estante, que mesmo com as variáveis, embora que pequenas, das cotações desta unidade monetário e do euro, não fazem com que o câmbio transponha o valor de uns exíguos trinta cêntimos. Apesar disso, o desenho de Muhammet Togrul Beg Türkmen na nota de tons verdes, e por ser de tão longínquo e pouco conhecido país, completamente exótica ao que por cá circula, fez-me adorá-la como Calouste quando, deslumbrado, defrontou pela primeira vez o então tetradracma de Mileto. A moeda teve como fim a contemplação. Havia de colocar o bolívar na estante junto da nota de um bir manat.
As moedas e notas andam por aí numa viagem sem destino, de mão em mão, de carteira em carteira, ora num país ora noutro, valorizando ou desvalorizando, como autênticos travel bugs de geocaching que fazem quilómetros sem que ninguém dê conta, silenciosamente e em simbiose com os seus beneficiários, que não dando por isso, mantêm-nas em circulação.

Matança da Páscoa

Os cristãos-novos de Lisboa apressavam o passo pelas estreitas ruas da cidade, sobre a luzidia calçada portuguesa, polida de tantos por ali passarem. Em todas as ruelas e até nas mais pequenas quelhas ainda definhavam excrementos dos moradores da noite anterior, que envolviam toda a cidade num imundo esterco, sinal da peste que viera ou da que ainda estava por vir, e que assolava todo o povo e velava Lisboa numa densa sombra negra de incerteza e medo.
Faziam-se chegar até ao largo de São Domingos acompanhados também por católicos – os cristãos velhos -, para ouvir a palavra deste deus que lhes arranjaram e que agora também era o deles, ou por imposição aparentavam sê-lo. Ao convento de São Domingos vão chegando cristãos, novos e velhos, que mesmo não sabendo nada de latim, e muito pouco da religião onde foram instruídos, se precipitavam para diante do altar para melhor verem a celebração da missa que não tardaria a começar. Sôfregos de uma resposta divina que fizesse cessar a já tão prolongada seca que fustigava a região, os crentes - mais crentes ainda nestas alturas de preocupação -, imploravam a deus misericórdias várias, cada um à sua maneira e como melhor sabia, que deus se fosse realmente grande e todo-poderoso como se dizia, haveria de os ouvir a todos e saciar as preces daquele povo. O convento já estava repleto de gente que continuava a passar além dos altos muros de um átrio grandioso para presenciarem também a missa e fazerem votos ao senhor. Naquele domingo, dezanove de abril do ano da graça de mil quinhentos e seis, os católicos imploravam sabidamente mais do que em tempos não tão sofridos nem de um sufoco tão grande, deixando-se assim cair cobardemente nas mãos deste deus, que castiga aos Homens pelos seus pecados e os recompensa pelos seus louvores – ou faz tão-somente umas aleatoriedades como as há no universo. Ainda a procissão ia no adro quando um católico, interrompendo de súbito a suplicada reza, se levanta de entre a multidão e aponta para o altar dizendo, Milagre, iluminou-se o rosto de cristo, logo depois outras vozes se levantaram em espantos vários e nas mármores pedras do convento ecoaram frases como, Finalmente uma mensagem de deus, ou ainda, Tenha misericórdia de nós senhor, ou depois ainda, já repetidas vezes, por muitos católicos, Milagre, milagre, milagre. Não tardou até todo o convento ficar envolvido de uma unissonante voz, pasmada e cega que proferia, Milagre. De entre eles surge então uma já tardia voz discordante, Irmãos, então não vedes que é a luz que vem da vela que alumia a figura de cristo crucificado.
Tal observação foi tida como uma afronta aos poderes divinos e inquestionáveis de deus. Repentinamente, católicos enfurecidos pelas proferidas palavras, começaram em protestos de toda a ordem que se adensaram quando alguém gritou tão alto, Herege, que pareceu abalar as brancas e frias paredes do convento e tudo o que elas simbolizavam. Continuaram os gritos, perdeu-se a ordem e dispersando-se dos seus lugares, católicos e cristãos-novos começaram uma troca de acusações e insultuosas injúrias. Dando conta das infames palavras do sefardita, alguns paroquianos agarraram prontamente o homem pelos negros e desgrenhados cabelos e arrastaram-no pelo chão, sem piedade, ao longo do convento de São Domingos até ao largo com o mesmo nome. O homem esperneou, esbracejou e soltou esganiçados gemidos de dor, perguntando talvez que costumes eram aqueles da religião no qual o estavam a tentar instruir. Já na rua debaixo de um sol aberto de primavera, foi espancado, agredido a pontapés pelos católicos que se iam juntando e fazendo da sua raiva, uma única e pertinaz ira de incitação ao ódio.
Incendiando ainda mais os ânimos dos tumultuosos católicos que viam nestes sefarditas e nos restantes cristãos-novos, a razão para todos os males de que o país padecia, um frade dominicano empunhando um crucifixo, começava a incitar a turba contra estes homens e mulheres, chamando-os de criptojudeus e acusando-os de blasfémias várias num discurso inflamado, Heresia, heresia, vede vós irmãos como eles têm o diabo no corpo, vede como chegaram para nos arruinar. Momentos mais tarde e estando já o desgraçado a dar os últimos gemidos depois de ter sido açoitado e lhe terem perfurado o corpo, com o que iam arranjando, para por da essência anímica do seu sangue, o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a expulsão e morte dos cristãos-novos e defender a identidade nacional, enuncia ainda o frade, Quem matar a descendência de Israel, terá cem dias de absolvição no mundo que há-de vir. E com vários pedaços de madeira, o mesmo material de que era feita a imagem de cristo e que havia sido iluminado pela vela, desta vez, não só se iria iluminar também esta madeira, mas ardê-la, para que nela ardesse também aquele cristão-novo que vira mais do que aquilo que deveria ter visto. Uma multidão de cerca de quinhentas pessoas, muitas juntando-se às que estavam no convento de São Domingos neste dia e testemunharam os acontecimentos, percorreram as ruas da cidade com forcados, garfos, segadeiras, sachos, forquilhas, paus, pedras e tudo quanto fosse capaz de abater e fazer castigar a cristãos-novos. Todos quantos fossem vistos, eram mortos ali mesmo ou arrastados violentamente para as fogueiras que se tinham acendido por toda a cidade e onde os cristãos-novos eram queimados vivos. Encetava em Lisboa um enorme tumulto de morte aos sefarditas, e a todos aqueles que proferiam uma fé disfarçada e não se comportavam segundo os valores cristãos católicos. Os outros que iam começando a dar conta do alarido geral, adiantavam-se para os parapeitos das janelas para mirar as ruas à procura de sinais do que se estava a passar. Desbandaram-se vários grupos que alastravam pelas sete colinas, onde se juntavam os católicos saídos de suas casas, não para ir orar à casa do senhor mas para manifestar a sua fé fustigando a cristãos-novos e quanta escumalha se lhe aparecesse à frente e fosse passível de degredo ou fogueira. O alcaide de Lisboa apercebendo-se do tamanho motim, tentou defender os cristãos-novos com a ajuda de sessenta homens e dirigindo-se ao largo de São Domingos tenta fazer detenções e apurar os responsáveis por aquela carnificina. De nada adiantou, apercebendo-se o povo de que este magistrado municipal estava do lado dos cristãos-novos, e portanto do lado da blasfémia e do pecado, foi acusado de pactuar com eles. O povo virou-se contra ele, de nada adiantou, foi perseguido e só não acabou na fogueira ao lado dos cristãos-novos que procurava defender, porque se refugiou em casa. As fogueiras foram alimentadas com as acendalhas do império, servos e escravos africanos. Não perderam a rubra cor durante toda a noite, brilhando sobre a margem do rio Tejo e dispersando fumo por toda a cidade, num dia em que quinhentas pessoas foram queimadas em Lisboa.
No dia seguinte a situação agravou-se, apercebendo-se os católicos que os cristãos- novos não haviam saído sequer das suas casas na manhã de segunda-feira e estando já as fogueiras sedentas de carne humana, fizeram ajuntamentos que reuniram mais de mil pessoas e arrombaram as portas das casas onde se sabia que moravam e se escondiam famílias de cristãos-novos. Entraram pelas casas adentro, escancarando as portas, agarraram famílias inteiras, pais, mães, crianças, velhos e novos, empurraram as mulheres grávidas pelas janelas onde as esperavam em baixo na rua, uma multidão com forcados e segadeiras para as esquartejar. Os fetos, envoltos em sangue, são arremessados e pregados como troféus nas forquilhas e espadas. As vítimas eram puxadas para fora das casas até às ruas, arrastadas, esmagadas contra as paredes e lançadas para as fogueiras. Aos homens partiam-lhes os ossos, traziam-nos para o largo de São Domingos, pontapeando-os, amortiçando-os, apedrejando-os, esmurrando-os de tal ordem que poucos eram os que ainda chegavam com vida às brasas das fogueiras. Entraram nas igrejas e arrancaram as imagens de cristo e da nossa senhora, das mãos de cristãos-novos que ali procuravam mostrar a sua fé por aquela doutrina. Todos tiveram o mesmo fim, uns eram açoitados tão violentamente nas ruas onde eram encontrados que morriam ali mesmo, arrefecendo na calçada, os outros, morriam queimados nas fogueiras, que haviam iluminado Lisboa com uma tenebrosa luz de melancolia.
A cólera abrandou na terça-feira, decorrendo dos acontecimentos deste dia e dos dois anteriores, a perda de cerca de três mil vidas. Lisboa haveria de ficar conhecida como cidade da tolerância.

Fim

Por caminhos sinuosos e em terra batida, por estreitas fileiras entre campos de cultivo ou na dura pedra de íngremes montanhas, quer fizesse sol ou chuva, vento ou tempestade, ora encontrando cascalho, pedras soltas e ervas daninhas, ora por autênticos desertos do que quer que seja, daquilo que os desertos não têm, lá ia um burro andrajosamente adornado que não passava despercebido, se necessário fosse dizê-lo, mesmo naquelas terras onde era este o animal mais usado para carga e outros ofícios. Não havia maneira deste errante burro vir a confundir-se no meio dos seus iguais mesmo que a este carga também lhe pesasse no lombo. Sobre este burro ia um colorido caixão que não raras vezes se havia dado como outra coisa qualquer. Em primeiro porque não é hábito destas gentes carregar caixões com o auxílio de um burro e depois, porque se hábito fosse, os caixões haveriam de ser como são os demais, que não tendo a sorte ou o acaso de serem levados ao colo deste teimoso animal, apodrecem na terra da mesma forma juntamente com o corpo que levam dentro. Deste caixão que parece não ter dono senão aquele a quem serve, não se conhece o destino, vai errante numa demanda que aparenta não terminar, quando, pelos factos relatados, esta é uma história de fim, onde tudo já havia terminado antes mesmo de ter começado. O burro fazia-se acompanhar por latas que chocavam umas nas outras abalando assim o silêncio envolvente, a calmaria de planícies de trigo, a pacatez de ruas envolvidas por musgo e onde o sol só espreita por vaidade, outros há onde apenas o leve som dos pássaros se faz ouvir e são esses os primeiros a romperem subitamente dos ramos das árvores e a dispersarem-se pelo ar assim que dão conta de um estranho ruído que antecipa a chegada de tamanha folia, como se barulho fosse preciso fazer para chamar a atenção dos que, não admirados com um burro, que esses sempre os vêm passar de vez em quando, se espantam com as majestosas vestes andaluzas que este adorna. Vestes que nem o mais endinheirado dos senhores, desta ou doutras terras dispõe quer para fugidias e esporádicas cerimónias ou celebrações quer tão somente como fatiota de domingo para levar à casa do senhor. Tão proveitoso traje, de refinados cortes, e um tecido que carece de delicadas mãos para ser trabalhado, e havia de ser um burro, o mais reles animal e com má fama, a levá-lo sobre o amarfanhado pelo. A todo o lado chega o estalar dos chicotes ou o seu eco, confundido o eco com o som da corda a bater sobre si, que mesmo parecendo fortes trovões, dão conta a par do barulho das latas, da euforia geral da procissão. Nem burro serve para carregar com um morto, nem um morto, seja que morto for, serve para ser carregado por um burro, mesmo que a um morto nada se recuse. Este cadáver adiado que procria mais não é do que a razão das festividades a que ousaram chamar de velório. Toda esta folia é dele, mesmo que nunca o venha a saber, nem ninguém saiba em verdade, quem foi outrora este agora cadáver que por certo desejou um fim em tudo contrário aos demais fins - daqueles que têm por vida a sepultura, dos que vivem sem que nada mais lhes diga do que a lição de raiz. À roda dele vão acrobatas e palhaços que fazem acompanhar o passo do burro, ora adiantando-se para a frente deste, ora deixando que os seus saltos e pinotes façam avançar a vagarosa marchar do equídeo. E mesmo saltando de um lado para o outro com alegres passadas, estes palhaços e acrobatas ainda conseguem fazer malabarismo entre si, não dando sequer um passo em falso nem jamais deixando cair uma clave de malabares, um arco, uma bola, uma tocha ou quantos mais objetos houvessem em diferentes trajetórias pelo ar. Em algumas passagens desta viagem sem fim à vista, juntava-se o povo para ver passar o burro enfeitado e o caixão com um rebordo de flores - do qual se conhece a papoila -, quer para apreciar a arte dos palhaços e dos acrobatas, que eram novidade naquelas bandas, quer para ver passar os demais que em altos ruídos se iam juntando ao desfile. Mesmo depois de já ir o burro adiantado, muitos ainda ficavam, julgando voltar a vê-lo passar talvez. Mas não voltaram.

Alegoria do Pi

Havia de ser este o dia em que, sem que nada o fizesse prever, nem um eclipse solar - nem lunar, nem nenhum alinhamento planetário, nem qualquer acontecimento à escala cósmica, nem mesmo à escala microscópica, que seriam revelados mais algarismos do valor de pi do que alguma vez havia sucedido de uma só empreitada. O acontecimento foi tido como marco na historia mundial, - e em particular na história humana, porque, refira-se, só esta particular espécie, até onde a nossa compreensão nos deixa antever, se empenha tanto em descobrir os algarismos que constituem este irracional número. Por muitos algarismos que sejam descobertos do valor de pi, e partindo do axioma que este se trata de um número infinito, pi estará sempre infinitamente incompleto - pouco menos infinitamente incompleto do que quando este não passava de um singelo e arredondado 3,14. Que maçada este caprichoso pi que sendo um único número, não finda em algarismos. E que persistente esta estranha criatura que mesmo sabendo, ou dando como sabido, que não se acabam os trabalhos na desenfreada demanda em busca dos algarismos que constituem o pi, não se dá por vencida nesta guerra, como se fosse possível o infinito dar-se por vencido contra este bicho da terra tão pequeno e tão finito. Vá-se lá saber se existe alguma ordem ou sequência para as decimais de pi ou se todos aqueles algarismos são dispostos como que aleatoriamente uns após os outros. Ainda não se descobriu, certo é porém que até agora naquela aparente infindável sequência numérica, ainda não surgiu nenhum padrão, nada com o qual se pudesse estabelecer uma relação de semelhança. Depois disto, maior descoberta ainda seria a finidade do pi. O antónimo daquilo que tenho vindo a assumir como verdade até então. Imagine-se agora que aquilo que pensávamos ser infinito, afinal não o era. Havia uma altura, não interessa em que ordem dos bilhões de casas decimais, que punha fim a esse tão grande número. E se pi tem fim então é infinitamente mais pequeno do que aquilo que se pensava. Poderemos demorar um ou dois séculos a determinar o seu exato valor, talvez mais, talvez não seja previsível, mas fica novamente a ideia que estaremos infinitamente mais perto de o conseguir do que se pi fosse infinito. Como não há indícios de que termine pi, e não passando tudo isto de uma suposição, deixaremos este assunto para aqueles que nele queiram pensar. A notícia de que tinham sido acrescentados tamanho número de algarismos à já grande lista deles, chegou a todo o mundo em poucas horas. A comunidade científica ficou muito agradada com o passo dado e questionou se haveria algo que não fosse de humano alcance. Os jornais e magazines deram moderado destaque ao pi, que se via agora maior, apesar de teoricamente continuar infinito. Em toda a imprensa, não se encontrou mais do que um artigo com duas colunas de texto sobre este assunto, o que refletiu o interesse da generalidade das pessoas que não deram muita importância a tal facto. Não se encheram praças, não se cruzaram avenidas. Não se celebrou o pi, que apesar de já ter um dia seu, haveria de ser seu também este - e todos os seguintes. Tudo passou com uma leviandade pouco ao nível do famoso número do perímetro do círculo tão admirado em todo o mundo e estudado ao longo de séculos de história. O impacte foi bem menor do que aquilo que se esperava. Descobertas destas não movem multidões, não unem povos, não mudam a vida tal como ela é. O pi é o mesmo e sempre o há de ser, com mais ou menos uns biliões de algarismos conhecidos pelos humanos. Havia de ser este o dia em que, sem que nada o fizesse prever, tudo continuaria na mesma.

Breve Reflexão sobre Palavras

As palavras ferem. Ferem por isto e por aquilo. Ferem por tudo e por nada. Ferem quando são inoportunas ou frias, quando surgem numa ou noutra frase de que não gostamos, mas não o dizemos, ferem naquelas ocasiões em que não estamos a contar mas eis que elas surgem, muitas vezes com uma frequência maior do que aquela com que aparecem no dicionário. Ferem e não deixam de ser palavras, não deixam de ter toda aquela calma e leviandade, principalmente quando escritas, nem de serem só palavras e de significarem muito pouco, de serem tão momentâneas quanto vazias, principalmente quando ditas. Ferem naqueles momentos em que não estamos preparados para as encarar com a determinação e coragem que as referidas palavras merecem, porque as palavras são assustadoras quer quando lidas, ditas ou até pensadas. São temidas por tantos que alguns não chegam sequer a usá-las, vir-se-à a saber que pelo simples medo que delas têm ou só porque não estão totalmente seguros da sua existência. E ferem. Ferem ainda mais quando não estão em concordância em género, número ou grau, quando são pobres em termos lexicais, ferem quando estão mal escritas ou quando são ditas de forma errada, quando compõem frases agramaticais, ferem quando surgem tão repetidas vezes, quer na escrita quer na oralidade, sem que nada nos indique que figuras de estilo como a anáfora, anadiplose, diáfora, epífora ou pleonasmo estão a ser empregues. Ferem por, num texto, não se conseguirem harmonizar o suficiente para que o leitor, ao as ter lido não notasse que as lera deveras. Porque se notou significa que alguma coisa não está por certo a resultar. Não se consegue aquele distanciamento tão desejado de ler um texto simplesmente pelo prazer de o ler, sem que se pense nas rodas dentadas das engrenagens e em todos os mecanismos que estão por detrás dele e que fazem com que este funcione. E para isso, para que flua sem ter de ser pensado, cada palavra tem de ser cuidadosamente escolhida para proporcionar ao leitor aquele gosto de ler um texto bem escrito, por mais perturbador que o seu assunto possa ser. Os sinónimos são por isso algo a ter bem em conta, mas é importante não esquecer que apesar de as palavras aparecerem relacionadas no dicionário de sinónimos, cada uma assume-se como única o que não torna de todo indiferente o uso de uma determinada palavra ou de um seu sinónimo. Subúrbios, arredores, periferias, três palavras com um significado semelhante, geralmente conhecidas por estabelecerem uma relação de sinonímia entre si. Mas afinal, qual delas tem popularmente uma conotação mais negativa? Porque usamos uma e não outra dependendo do contexto? Por ventura terá sido o léxico coletivo, por influência talvez da origem etimológica da palavra, que ditou este preconceito também ele coletivo em torno dos sinónimos. Se todas estas palavras são sinónimos, que no quotidiano significam essencialmente o mesmo, não deveria existir problema em utilizar qualquer uma das denominações, termos ou designações - note-se o uso de três sinónimos. Não é necessário o uso de todos eles, não em simultâneo, mas ficam aí para mostrar como qualquer um deles expressa aquilo que pretendo dizer. Todas casam perfeitamente nesta situação, mas nem sempre assim é, e por isso existem sinónimos que são naturalmente para serem usados. Mas afinal, de entre os sinónimos largo, amplo, vasto, extenso, espaçoso ou grande, qual deles o que tem maior área? De entre inovador, moderno, vanguardista, atual, contemporâneo, progressista, qual deles o mais recente? De entre brilhante, cintilante, luminoso, fulgurante, luzidio ou resplandecente, qual deles imite mais luz? Porque será que para mim remoto é mais distante que longínquo, do que longe e do que afastado? Quão mais distante será o remoto do longínquo por exemplo? Como é que numa palavra consegue estar subentendida toda esta informação? Se por um lado sinónimos são palavras que estão apenas relacionadas e que não podem ser somente vistas como maneiras diferentes de dizer uma mesma coisa, porque muitas vezes não se trata de uma mesma coisa, por outro não devemos ter ideias pré-concebidas sobre o significado de cada uma. Talvez subúrbios ou periferias sejam frequentemente mais marginalizados do que arredores. Assim como outras palavras acabam por sê-lo em consequência do uso que lhes damos. As palavras ferem.

Átomos

Os átomos reuniram neste século, neste momento, para constituírem aquilo que eu sou hoje. É assim com cada um de nós. Certamente haverá uma ordem que por mais aleatória que seja, ditou que assim fosse. Hoje sou este, ontem fui outro que já não sou e amanhã outro serei. Essencialmente o mesmo, mas mudado em parte devido à matéria que me constitui e que muda a cada instante. Mudamos tantas vezes que se torna difícil definir aquilo que somos através da matéria que nos constitui. E mesmo essa matéria é uma ínfima parte, - quase infinitamente mais pequena - do restante espaço vazio que há em cada um de nós. Somos o vazio, pouco mais de matéria mas essencialmente isso. Depois de eu morrer, não serei mais nada senão uma reorganização dos átomos que outrora foram meus. Se é que posso considerar meus esses átomos que nada de mim levarão. Eles continuarão a ser átomos. Hão agora de ir ser outra coisa para um outro lugar, não importa o quê nem para onde. Na verdade não morremos, nem tão pouco nascemos, reorganizamo-nos apenas. Se todos nós somos estes átomos que sempre existiram ao longo da história, e que por bem continuarão a existir, muito mais velhos do que a idade que nos dão e que nos constituem, unidade básica de tudo o que existe, que parte de nós é afinal somente nossa? Existirá ao menos algo intrinsecamente nosso, que não é de mais ninguém? Algo que não faz parte de um todo, onde não há proprietários da matéria, nem daquela que nos constitui? Concluo portanto que não somos nossos, não nos pertencemos. Onde estariam os átomos que hoje carrego no início do século XIX? Será que alguma parte de mim participou nos teatros da antiga Grécia, no Cerco de Lisboa, nas Revoluções Francesas, na Caça às Bruxas, nas Cruzadas à Terra Santa, na Batalha de Alcácer Quibir ou até na Primavera Árabe? Estariam estes átomos numa outra parte do qual não reza nenhuma história nem se contam mitos nem lendas? Numa parte que embora não tenha sido nada no passado, constitui o que somos no presente? É interessante pensar na impossibilidade de dar resposta a estas questões, na História que carregamos connosco desde que nascemos, fragmentos que poderiam ter tido um papel decisivo e que nós não sabemos, nem nunca saberemos. Repetir-se-á a História por causa de no fundo envergarmos sempre os mesmos átomos? Por termos em nós fragmentos de biliões de outros? A história repete-se tanto como repetidos somos nós. Somos História. Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Disse-o Lavoisier envergando em si os átomos que o formavam na altura e que haverão de ir ter febre para outros cérebros do nosso século ou de séculos seguintes. Não se perde nada, nem nada se cria, tudo se reorganiza.

Alegoria da Cegueira

A experiência, por mais contestada que tenha sido, serviria para todos verem como era a vida daqueles que num contexto literal não o podiam fazer. O dia da cegueira que se instituía naquele ano e que se esperava que fosse perpetuado nos seguintes, ficaria na história como o dia em que todos se deveriam comportar como cegos. Ainda que de uma cegueira fingida se tratasse e apenas no curto período de um único dia, a iniciativa foi contestada, não poderia agora o país parar por tão inoportuna ideia, haviam serviços para serem prestados, pessoas que como é hábito tem as suas vidas e carecem de cuidados que só um bom par de olhos pode auxiliar, como operações médicas a realizar, viagens de avião, distribuição do correio, escolas que precisam de funcionar, todos e quaisquer serviços no qual a visão era fundamental. Não, não será viável, diziam uns, Trata-se apenas de uma iniciativa grandiosa e solidária, contrapunham outros. Foram usados argumentos baseados na economia do país, que, ao que parece não se podia dar a estes luxos de ver o seu povo cego, argumentos sociais, onde se referia que, tendo sido esta uma iniciativa para alertar para a dificuldade que os cegos têm em lidar rotineiramente com a sua sina, poderia ter efeitos contrários como o desprezo e até ódio pelos mesmos, políticos, onde se disse que este governo se há coisa que tem feito desde que funções assumiu é cegar constantemente o seu povo e portanto um dia como este, só se falta fizesse, o que parecia não ser o caso, um ou outro excêntrico argumentou ainda que, sendo a visão o principal dos sentidos, seria um crime tentar privar as pessoas desse privilégio que tendo alguém o dom de ver, optasse por não o fazer de sua própria vontade. Durante os dois meses que antecederam ao dia marcado como o dia da cegueira em que pela primeira vez na história um país estaria à beira de conseguir cegar toda a gente, ainda que por um único dia, não se falou de outra coisa, quer neste país, quer nas suas vizinhanças onde o acontecimento foi tido com estranheza mas aplaudido por muitos que viam na iniciativa algo a replicar no seu próprio país. Não se compreendia, porém, como é que se pretendia retirar o tão precioso sentido que é a visão aos milhões de cidadãos que tiveram o acaso de ter nascido neste país. Muitos reivindicaram a iniciativa com campanhas contra onde se incentivou as pessoas a não sucumbirem a interesses e lobbys de grandes instituições, foi especulado que estaria a ser preparado de forma sigilosa um ataque aéreo que tomaria lugar no dia em que, palavras dos opositores, O povo estará entretido a fingir-se de tolerante e compreensivo para com os cegos, quando, em quaisquer outras circunstancias eram capazes de os desprezar. Apesar de se ter formado uma vasta oposição, a iniciativa não foi cancelada, o dia que se queria de alegria em que todos provariam da infelicidade ou simplesmente acaso de não serem capazes de ver, estava cada vez mais próximo e a apenas uma semana do tão aguardado evento, o governo anunciou que iria atuar junto das autarquias de forma a cessar toda a rede nacional de estradas, no qual, conste, não foi previsto regime especial para veículos em missão urgente de socorro nem quaisquer outros que não sendo de socorro, carecem de igual urgência. Mais uma vez, a contestação daqueles que com medo de vir a morrer ou a precisar de cuidados menores, ou maiores, visto que depois de mortos não se dobram os trabalhos, vieram a tentar saber junto de superiores hierárquicos como seria possível que ao tentar defender os interesses de uns, os que não viam, se esquecessem daqueles que vendo prefeririam não ter de ver toda esta situação. Sem resposta prévia apenas um comunicado embrionário sobre a defesa de interesses coletivos como era o dia da cegueira, um breve rol de palavreado mas que nada continha na sua essência sobre os problemas anteriormente apresentados. Os dias seguintes foram mais calmos, os apoiantes da iniciativa tinham ganho força com os preparativos que um país às cegas obviamente carece, porém, sendo esta uma causa que pretende alertar para o facto de este país em particular e o mundo em geral não estar devidamente adaptado para os invisuais, os cuidados foram mínimos, e os serviços públicos que também se esperaria que fossem, no mínimo, também eles mínimos estavam ainda num grande impasse sobre se na pratica iriam ser garantidos ou não. No dia anterior à iniciativa, a oposição voltou a atacar, se este país estaria prestes a embarcar em tal mar, metáfora curiosa tendo em conta o povo de que falamos que embora não mencionado, imaginar-se-á de quem se trata, interroguem-se esses se, depois deste dia não viriam outros por sua vez para sensibilizar as pessoas para outras deficiências como a surdez, ou a mudez. Imagine-se um dia, esse período diurno e noturno de vinte e quatro horas, em que ninguém falasse e um outro numa outra data em que ninguém ouvisse...
No dia seguinte ninguém cegou, frase parecida com a de início e de término de um livro que, a saber aborda o complexo tema da morte, a vontade que alguns têm de viver para sempre e como a vida eterna é pior do que a própria morte, a respeito disto diria talvez Caeiro que quem teme a morte acha de alguma maneira que a pode contornar, porque se a tivesse a ela como a única certeza, aceitá-la-ia como realidade e nem nela pensava. Ora, apesar de ninguém ter cegado, o que no dia dedicado à cegueira parecia capricho da própria, alguns vieram a afirmar que não só ninguém cegou como os que até então ainda viam deixaram de ver por completo. Palavras estas que poucos entenderam mas que todos escutaram.

Ideias Perigosas

Chegou-me às mãos um objeto que carece de extremos cuidados. Dizem que é como uma semente que, de forma não literal, se planta numa pessoa a ver se nela nasce alguma coisa. Dizem que é perigoso e que causa habituação. Dizem que o seu conteúdo leva as pessoas a alterarem os seus comportamentos. Estamos todos informados sobre o efeito do consumo excessivo de álcool no organismo, sobre os riscos da internet, sobre as agravantes de uma vida sedentária, sobre os malefícios do tabaco para a saúde, sobre a crescente taxa de obesidade infantil, que mesmo com todas as prevenções continua a crescer, sobre os perigos de contágios disto e daquilo, enfim, um leque de conhecimento para nos prevenirmos deste perigoso mundo. Tudo quanto uma pessoa carece para alterar alguns comportamentos. Quanto a isso, de acordo, afinal de contas sempre que a expressão "alterar comportamentos" surge numa frase, prevê-se que essa alteração seja para melhor e por isso vem-nos à ideia aquela tal coisa a que alguns chamam evolução e portanto estamos todos de acordo como pessoas ponderadas e liberais que somos. Embora possamos ou não agir em conformidade com isso, é certo que estamos conscientes acerca dos muitos perigos anteriormente referidos e dos outros que por desleixo ou subentendimento não foram referidos. Porém, por muita informação que me tenha chegado, nunca ouvi alguém falar seriamente sobre o perigo que é ler um livro, sobre os efeitos nocivos de entrar num museu ou assistir a uma peça de teatro, sobre os danos irreparáveis que o simples ato de pensar deixa sobre aqueles que ousam fazê-lo. Destes perigos não constam colóquios, conferências nem congressos que poderiam muito bem ter o nome “O contágio de uma ideia”, não se discute o problema em debates, não se fazem ações de prevenção como "Deixe de se informar: um passo de cada vez" nem campanhas de sensibilização como "Ler é obra do diabo". Este último não seria de todo improvável uma vez que, dada a quantidade de livros que outrora se queimaram neste mundo, imagine-se apenas a monumental biblioteca de que está o inferno servido. Em parte é compreensível, que em verdade vos digo, não desejo a ninguém a difícil tarefa de convencer uma plateia de que o saber, como não ocupa espaço, se mantém como o volume de um livro mesmo quando deste só restarem cinzas, como fez por explicar Lavoisier. Isto para dizer que as páginas pintadas com tinta dos livros não são perigosas, as ideias que nelas carregam sim, e essas são muito mais difíceis de exterminar. Não bastará queimar também os corpos dos que em si as transportam porque devido à sua elevada taxa de contágio não há fogo capaz de acabar por completo com uma ideia. Não há rotulagem nos livros que nos informem acerca dos seus possíveis efeitos colaterais nem da dosagem diária recomendada. Não constam os alaranjados símbolos de nocivo, tóxico ou perigoso. Nada diz sobre manter fora do alcance de pessoas de uma determinada faixa etária ao qual as informações contidas naquelas páginas possam conduzir a comportamentos desviantes. Em vez disso surgem algumas informações sobre a editora que se atreveu a por no mercado o tão perigoso artigo e o nome do redator que de forma silenciosa lança o vírus e fica à espera do seu contágio. 

Fátima: A Real Santa Aparição

Está próxima a data comemorativa das aparições de nossa senhora de Fátima. É certo que a divina mulher, por estes dias, anda desaparecida ou desacreditada, já não aparece ou ninguém a vê quando aparece ou já não sabem se a viram de facto. O que lhe vale é que basta aparecer uma ou duas vezes e fazer um ou outro milagre para entrar na graça, não na do senhor que nessa ela já está, mas na graça dos Homens. Parece que esta andou em demanda por esse mundo fora e que, tal como Madonna ou uma qualquer outra senhorita que se lembre de por cá passar em tournées, veio a Portugal deixar uma mensagem e esclarecer que o senhor tem este jardinzinho à beira mar plantado em muito boa conta. A prova disso é ter aparecido num lugar com uma notória influência dos mouros. O recado que a nossa senhora trouxe ao aparece por cima de uma azinheira é a de que não há Deus que mais vos ame que este, tenha ele o reino e a denominação que tiver! Construa-se um belo e imponente santuário para que aqueles que querem ser salvos possam rastejar livremente pelo chão e fazer outros tantos sacrifícios, que Deus, mesmo amando-nos a todos, não recusa uma bela duma oferenda deste bicho da Terra tão pequeno. Só se salva do Inferno quem deste provar na Terra. Quem diria que para se livrarem da profunda morada dos mortos, os fiéis e os outros, tenham de passar pelo tamanho sofrimento que dizem lá haver, porém, mais vale este que é efémero do que o outro que é eterno. É curioso que na maioria das vezes que a nossa senhora apareceu ao mundo tenha pedido para que fosse construído um santuário em sua honra. Já se sabe que mais do que a vontade para fazer o bem e promover a paz há a danação para que se erga alguma coisa que mais perto fique do dito céu. Em tempos, Deus destruiu a torre de Babel por não ser os céus pertença dos homens, mas parece que isso já vai longe e que não consta nas sagradas escrituras. Entretanto criou-se uma nova ordem global onde os mais santos são aqueles que conseguem as maiores aglomerações de povo e que possuem os maiores monumentos porque, em verdade vos digo, mais perto de Deus estão. É possível que se tenha confundido a nossa senhora com um ou outro ministro das obras públicas que tenha também ele deixado claro que o seu objectivo é edificar. Não isto ou aquilo, não o que é preciso ou indispensável, apenas edificar! Tanto numa como noutra, o assunto é vago, não se sabe porquê, como, nem quem e portanto não admira que se prescinda da burocracia. A diferença é que no caso das obras públicas, talvez por não serem de aspiração divina, não ficam mais próximas do céu, mas antes próximas metaforicamente de um profundo buraco de milhares de milhões. Isto de seguir os conselhos de entidades divinas, tem as suas vantagens, o retorno está garantido. Por outro lado, se toda e qualquer obra que se levantasse tivesse uma mãozinha de Deus ou de alguém seu íntimo, não haviam dias suficientes no calendário para tantas peregrinações. Ainda bem que apenas algumas têm essa sorte de estar marcadas com a santa insígnia, porque se há coisa de que a Igreja não gosta é de concorrência.

Poeta da Modernidade

"Estou velho. Cheguei a uma idade complicada em que já não sei se é educação ou não quando me cedem um lugar sentado nos transportes públicos. Estarão a chamar acabado a este corpo deambulante sobre três pernas apoiado? Não preciso de ir sentado. Ir de pé é ir mais rápido e eu nunca gostei de olhar por cima de um ou outro jornal como fazem as pessoas sentadas. Ir sentado é demorar e eu não quero demorar. Não tenho tempo para ter tempo. Ser velho é ter opiniões. A monotonia dos meus dias são as pessoas sentadas. As que vão de pé são sempre diferentes, todos os dias. Não me obriguem a ficar grato pela vossa boa ação e ter de ir sentado. Não me obriguem a aceitar de bom grado o vosso lugar para que vocês próprios se sintam bem. Isso é que não! Não! Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los e saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Afinal o que se leva desta vida é o que somos. Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Prossigo então. Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. Quando me querem ajudar a atravessar a rua. Nunca me ajudaram a atravessar a rua. Realmente isso nunca aconteceu agora que penso. E também não sei se é educação ou não, se apenas um simples cliché de boa ação do dia. Boas acções do dia são para aqueles que por certo têm mais dias do que boas acções! Poupem-me! Também não quero ser ajudado! Apenas uma vez seria suficiente para eu me aperceber do quão ridículo é ajudarem-me a passar a estrada. Sou capaz de o fazer sozinho! Que maçada acharem que nem isso sou capaz de fazer! Não me ajudem a atravessar a estrada, tirem-me dela. Peguem-me pelo braço e arrastem-me sem piedade! Como a um louco! Como a um danado! E eu que tanto quis sentir não havia de chegar a esta idade sem sentir o desprezo por um homem inútil. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Que embaraço ao trânsito é o meu passo lento e deambulatório! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! E fico grato porque a pressa que tenho não é aquela que os outros têm. Não, não creio em mim.
Quando se referem a mim no passado. Passado ficaria eu se isso fosse ainda de importância! Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz. Pretérito perfeito dum raio! "Foi um grande homem.", "Fez muita coisa quando era novo.". Uma falta de educação é o que é! Como é que falam de mim como se eu já estivesse morto? Como se eu não pudesse vir a ser grande outra vez. Não poderei. Estou impedido apenas pela velhice e pelo cansaço. Não pela velhice por si só. Não pelo cansaço disto ao daquilo. Como se fosse um homem desta idade fazer coisa alguma! Fuma o seu cigarro enquanto sofre porque sofre enquanto vive. Se eu fosse importante, poderiam escrever a minha biografia quase completa. Poderiam redigir livros e artigos sobre mim e acrescentar a data da minha morte quando ela chegar. Se eu fosse importante o menos importante que eu teria seria a data da minha morte. Como não sou limito-me a sofrer da lucidez com a dignidade que se espera! Isso que tanto procuro e que tanto temo. Olho a tabacaria do outro lado da rua. Que pensará o universo do acelerar do meu coração? Que pensará o universo quando tudo isto se acabar? Dará ele conta ao menos da nossa passagem? Falhei em tudo. Como o universo. Ele morrerá e eu morrerei. 

Quando deixei de pensar em depois
A minha vida tornou-se mais calma -
Isto é, menos vida.
"

Papa Pop

Desde a sua consagração que o Papa Francisco tem vindo a conquistar a admiração de uma vasta multidão, quer a fiel à sua doutrina quer a dos demais fiéis a outras e até a daqueles que não se dizem seguidores de coisa nenhuma para além do Instagram da Rita Pereira ou do Twitter da Katy Perry. Há que louvar a popularidade de uma pessoa como o Papa Francisco principalmente pelo cariz da sua popularidade. É de notar que, não sendo ele um jovem cantor que faz tornes pelo mundo ou uma qualquer estrela do cinema, obtenha um mérito semelhante. Infelizmente os velhos são desprezados da vida afamada e influente do mundo. É esperado que a partir de uma certa idade se seja ou comentador político ou futebolístico ou então escritor de opinião numa coluna num semanário ou ainda um velho ex-político ao qual já não se dá o mínimo de credibilidade. Na generalidade, não é atribuído aos mais velhos uma grande importância, o que, na maioria das vezes é de lamentar.
Divergindo desde logo da tendência geral por ter uma grande influência no mundo, o Papa Francisco já tem ditado mudanças significativas na igreja católica – considerando a quase imutabilidade da mesma nas últimas décadas. Na prática este Papa não mudou muito, mas numa igreja com ideias fixistas, qualquer pequenina mudança parece todo um novo conceito! O Papa Francisco é uma espécie de Violetta da igreja. Uma figura que aparece numa altura em que os escândalos na igreja, a vários níveis, estavam a afastar os crentes. O Vaticano precisava de uma lufada de ar fresco e de uma imagem renovada para voltar a conquistar a confiança dos crentes desacreditados. Os outros Papas eram capazes de dizer redundantemente “Não!” à ordenação das mulheres, este diz “Não, no entanto é necessário reconhecer o contributo essencial da mulher na sociedade e a Igreja é feminina, a mãe de família.” Uma postura carismática e humilde, e um cuidado reforçado nas palavras dão às declarações demagógicas do Papa Francisco um tom liberal. Na prática a sua posição continua a ser a da igreja, rejeição à ordenação das mulheres, no entanto a forma de o dizer é outra por isso reconheçamos o seu mérito. Ora, numa igreja tão feminina, para quê a ordenação das mulheres? É até aconselhável que se mantenha apenas a ordenação de homens para equilibrar a igreja destes níveis de feminilidade. Num dia diz que o mundo tem uma postura indiferente aos imigrantes, no outro diz que o verdadeiro jejum vem do coração. É de todo normal o papa sentir compaixão pelos imigrantes uma vez que ele próprio é imigrante no Vaticano assim como toda a população da Santa Sé. Rodeado de imigrantes o papa conhece bem as dificuldades que eles têm de superar no dia-a-dia. “Onde fica o seminário XVI?”, “A que horas é o colóquio com sua eminência?”. Este tipo de dificuldades comovem qualquer um e o Papa não é de ferro! É uma figura popular na Internet e especialmente no Twitter, as suas palavras são irremediavelmente notícia e é aguardado por milhares de pessoas para onde quer que viaje não tendo no entanto Hilton no seu nome.
É importante reconhecer que o Papa Francisco tem feito um enorme esforço para mudar alguns comportamentos da igreja católica, no entanto, deve ser mais reconhecido ainda o seu poder carismático, de conduzir um povo e de o encantar com os seus discursos. E tendo isso, um homem não precisa de mais nada. Ou de muito pouco.

Ensaio Verdade/Paz

A filosofia aspira à verdade que o mundo não quer. A filosofia é portanto, perturbadora da paz. As premissas que nos são apresentadas inicialmente levam-nos a concluir, de certa forma, que ao aspirarmos à verdade que o mundo não quer, estamos a perturbar a paz. Qual é a verdade que o mundo não quer? Será que nós também precisamos dessa verdade, mesmo que para isso a paz seja perturbada? Poderá a verdade ser perturbadora da paz?

É importante esclarecer a ligação existente entre verdade e paz. Não são conceitos subordinados um ao outro. O mundo mostra-nos regularmente que existe paz em lugares onde, segundo os nossos ideais diríamos que não existe verdade. O contrário também é válido, o conhecimento da verdade, ou a procura pela mesma, não conduz necessariamente à paz. Podemos concluir que os conceitos de verdade e de paz são relativos. Nunca teremos total conhecimento da verdade, por um lado porque enquanto ser irrequieto, o Homem não desiste, nem desistirá de procurá-la. Tem-no feito desde há milhares de anos e até os regimes mais opressores deste planeta são prova disso. É talvez aqui que se estabelece uma ligação entre verdade e paz. Se tivermos consciência de que a verdade absoluta é inalcançável, teremos certamente a racionalidade de que se quisermos, somos capazes de impor falsas verdades aos outros. Manipular as pessoas é dar-lhes o que elas querem. A verdade. Mesmo não a possuindo, podemos impô-la no outro como máxima a seguir e a obedecer acima de todas as coisas. A melhor forma de implementar a paz é subordinar o pensamento a uma verdade estabelecida e evitar que a mesma seja refutada. A paz não se liga a uma verdade que consideramos universal e inalcançável, mas sim aquela que é incontestada e portanto aceite por todos. A unanimidade é pacífica. 

Haverá paz em regimes ditatoriais que controlam todo a informação que pode ser dada às pessoas, sujeitando-as ao desconhecimento e muitas vezes à fome extrema? Certamente haverá, contudo, é uma paz subjugada aos interesses de superiores hierárquicos que pretendem a todo o custo manter a sua soberania. Por isso, esse tipo de métodos de domínio só pode obter a nossa reprovação tendo por base uma ideologia democrática ocidental pela qual nos regemos.

A paz tem portanto um simbolismo duplo. Pode ser descrita como um ambiente em que prevalece o respeito, tolerância e cooperação ou então, por outro lado, como um ambiente de medo, submissão e privação. Estamos perante formas de paz diferentes que se expressão naturalmente de forma diferente na sua essência, mas que em ambas é de esperar existir uma paz social que torne as acções populares o mais pacifistas possível. A paz tem também um lado fascista e extremamente perturbador. Quando se indicou, em 2014, Malala Yousafzai para o prémio Nobel da paz, que aliás acabou por vencer, claramente não foi pelas suas atitudes pacifistas. A passividade e o comodismo raramente mudaram o mundo. Foi exatamente pelo seu constante ativismo pelos direitos das mulheres no Paquistão. A necessidade de mudança, de implementar a paz sabendo porém que o caminho passaria pela ausência da mesma. Ou seja, não promovendo propriamente a paz, uma vez que se opôs ao regime, Malala promoveu a liberdade de expressão e o direito à educação o que lhe valeu o prémio Nobel. Malala promoveu a verdade, mesmo que para isso tivesse de perturbar a paz.

A melhor forma de impedir que a paz seja perturbada em prol da verdade, é subnutrir aqueles que se poderão opor ao poder. À partida, ninguém se revoltará se não tiver forças para isso. Não estamos a falar de fome, mas sim de uma subnutrição aguda, ou seja, apenas o suficiente compatível com a vida. Os regimes mais fechados deste planeta usam esse método para manter a paz. O raciocínio é simples, a prioridade de qualquer ser vivo é sobreviver. Enquanto tentamos sobreviver não temos tempo para pensar nem para nos revoltarmos. É característico do Homem ter fome de conhecimento, mas só se não houver fome de pão. As democracias europeias usam também elas métodos, embora que radicalmente diferentes, para manter a paz. A paz é importante para que um sistema possa funcionar e evoluir, e daí a redundância em ser procurada por quase todas as civilizações. 

A filosofia tem vindo ao longo dos anos a enfrentar ideias que não podiam ser refutadas porque, ao contrário de outros teoremas, não assentavam em axiomas, mas antes numa aspiração divina. A sua postura antidogmática foi então uma frente perante religiões que não concordavam com as suas teses e temiam novos raciocínios, ideologias e concepções da realidade que pudessem por em causa a fé dos seus seguidores. É de referir que o pensamento filosófico nunca assumiu uma postura ateísta, mas antes uma abstenção face a qualquer religião uma vez que isso condicionaria toda a dedução lógica do pensamento. Para procurar a verdade, temos de partir de um completo estado de neutralidade e abstinência, embora, na prática, isso não aconteça. Julgamos as nossas e as acções dos outros tendo por base os ideais definidos pela sociedade onde estamos inseridos.

Em suma, a verdade só é perturbadora da paz se tivermos medo das consequências que essa verdade possa ter sobre nós. A maior perturbação de paz a nível individual sucede quando vemos refutados conceitos que tínhamos como certos até então.

A Teoria do Adiamento

Adoramos adiar tudo e mais alguma coisa. Dá-nos um gozo enorme adiar seja o que for. Adiar é humano, tanto como errar e todas as outras coisas tipicamente humanas. Nunca, ou quase nunca fazemos aquilo que estamos convictos de que um dia vamos fazer. Isto porque os nossos planos são mais do que muitos e apenas uma pequena parte deles acaba de facto por se realizar. "Vou-me inscrever no ginásio!", "Vou reduzir nos fritos.", "Vou fazer voluntariado.", "Vou ler este livro." Promessas que com o tempo se vão desvairando, transformando-se o “vou fazer” em “hei-de fazer” e posteriormente numa fase já de derrota, em "queria fazer" até que se deteriora completamente caso não se venha a realizar. A indefinição do quando vamos fazer causa em nós uma sensação fantástica. É sem dúvida melhor viver num estado de "hei-de fazer um dia" do que num de "vou fazer no dia...". Viver no adiamento é por um lado acharmos que aquilo que queremos fazer está próximo, uma vez que é recorrente no pensamento, estando no entanto longe de vir a acontecer. Adiamos tanto o agradável como o desagradável o evitável e até o inevitável tentamos adiar. Em todo o caso é compreensível viver no adiamento. Adiar alguma coisa é prolongá-la no tempo. Proporciona-nos um grande prazer saborear uma comida de que gostamos muito. Nesta situação não estamos a adiar mas sim a antecipar o prazer resultante só de pensar no delicioso prato que temos à nossa espera. E, adiando esse prazer, prolongamos o prazer que nos dá saber que uma refeição vai ser do nosso agrado. Em certa medida, este prazer resultante da antecipação pode ser até melhor que o proporcionado pela degustação do prato em si.  Adiar é a procura de um prazer prolongado e constante. No entanto, a verdade é que imaginamos as experiências futuras sempre mais surpreendentes do que aquilo que elas vêm de facto a ser. Por isso, é de aproveitar a fase de adiamento, a fase do "Enquanto não chega" porque o resto não é assim tão bom. É uma desilusão. Uma treta. 

Que Trinta e Pico

Desde há milhares de anos que a humanidade tem vindo sendo confrontada com uma questão que irremediavelmente tem sido deixada para as gerações futuras. A evolução poderia ter sido abreviada até aos nossos dias caso alguém tivesse avançado uma resposta fundamentada e tida como válida. Não menospreze esta reflexão, trata-se de um assunto importante e de alguma urgência. Afinal, que horas são 7 e tal? E qual é mais tarde, 7 e pouco, 7 e tal ou 7 e pico? É disto que se trata. Será o "tal" mais 2 ou 3 minutos que o "pico" ou vice-versa? Quão "pouco" são 7 e pouco? Chegarei atrasado se chegar às 7 e tal, se estava marcado para as 7 e pico? É obviamente necessário despenalizar todas as civilizações que utilizavam o sol como relógio. Eu compreendo que não deveria ser fácil apresentar com precisão os minutos decorridos após hora certa com apenas um ponteiro. A esses e aos demais que utilizaram métodos rudimentares semelhantes não será dado um "puxam de orelhas". Para aqueles que, tal como nós, já nasceram no tempo dos relógios de engrenagens, com dois ponteiros e numerados de um a doze, não pode haver desculpas. Mas, afinal, será "pico" menos que "tal" e mais que "pouco"? Bem, ninguém poderá dizê-lo com certeza, pelo menos enquanto não quantificarmos termos não quantificáveis. Nesta linha de pensamento poderemos perguntar de onde vem a expressão "que trinta e um". Terá sido um dia 31 muito atribulado? Ou terá sido alguém que fez + 1 do que trinta por uma linha? Tudo boas perguntas, ao qual também não posso evidentemente responder. Voltemos às 7 e "tal, pouco e pico". O uso de termos como 7 e tal ou 7 e pico, na minha opinião, deve sim ser usados para apresentar uma estimativa da hora, como forma de expressar a nossa incerteza. É de evitar usá-los para apresentar uma hora mais exata principalmente quando hoje os relógios digitais já ocupam os pulsos alternadamente com os clássicos relógios analógicos. Embora muitos destes últimos já não sejam numerados a sua leitura das horas permanece acessível. Para não falar na crescente tendência de desprezar o relógio para ver as horas e utilizar o telemóvel, como de resto para quase tudo. E se nem assim nos damos ao trabalho de ler prontamente as horas, isso é que é um grande trinta e um!

Aldrabar um Puzzle

O maior problema ao montar um puzzle de 1500 peças que, assumo, não é dos maiores que se encontram por ai, são os sábios comentários dos que estão de fora, apenas a assistir. Desenganem-se os que pensavam que o problema residia na dificuldade em encontrar as pequenas peças e conseguir encaixá-las. Olhar para os encaixes da peça, remexer no monte desordenado da caixa e olhar novamente para os encaixes. Separar as peças retas das extremidades para formar a moldura do puzzle. Uma vez que isto de montar um puzzle é moroso para qualquer amador, completamente leigo na matéria, são apresentadas alternativas para que, não fosse isto de montar um puzzle num digno período de tempo, apenas obra de quem resolve um cubo de Rubik em segundos. Ora, o que levaria alguém a tentar acelerar um processo que se quer que tome o tempo que for preciso? Não se sabe. Provavelmente a nossa necessidade de acabar uma tarefa o mais rápido possível. E de aldrabar a sua resolução sempre que folga houver para isso. Quando estamos a ler um livro que nos está a dar um grande gozo ler, queremos lê-lo rapidamente para deslaçar a trama, porém com a noção de que quando acabar não haverá mais para gozar. Um entretenimento que tem, como todos os outros, o objectivo de ocupar o tempo, e ocupá-lo o mais possível e da melhor forma, é aldrabado por nós que constantemente queimamos etapas. É sugerido que, para tornar mais fácil a busca pela única pecinha capaz de encaixar num determinado sítio, todas as peças deveriam estar numeradas no verso. Por cima do cartão azul que forra a peça era de facto preciso uma numeração. De 1 a 1500 numa numeração mais simples, coordenadas tipo batalha naval, em função do formato, uma vez que em regra em cada puzzle existem duas peças exactamente com a mesma forma, admitindo que este último para experts. É curioso como esta sendo uma ideia que tenta facilitar a resolução de um puzzle, acaba por não facilitar muito. Entre procurar uma peça de entre centenas pelo seu aspecto e procurá-la pelo seu número, não sei qual a melhor. Uma coisa é certa, de qualquer das formas o entretenimento estava garantido, deixava de se montar um puzzle e passava-se a jogar uma versão alternativa do bingo. É uma questão de escolher!

Charlie

Numa semana marcadamente sombria para a liberdade de imprensa, com a perda de cartoonistas que no fundo eram activistas pelos direitos fundamentais como é o direito à liberdade de expressão, o mundo reflecte sobre se de facto todos temos esse direito, de pensar e de nos expressarmos segundo as nossas convicções. É óbvio que não. O que existe na constituição falha redondamente na prática. Quando, na quarta-feira ecoou por todo o mundo a frase “Je Suis Charlie”, “Eu Sou O Charlie”, em português, esta estava muito mais próxima de ser apenas uma sincera homenagem e um pedido de desculpas pela nossa intolerância face a cartoons ditos exagerados do que transmitir a ideia de que todas as forças do nosso ser apoiam e enaltecem constantemente este e outros direitos fundamentais. A verdade é que usando da nossa liberdade de expressão fazemos reduzida a de um outro por considerarmos a sua – liberdade de expressão - ofensiva para alguém. Torna-se vicioso. O que há num Charlie? Não pode haver medo. Há riscos, mas a própria liberdade é um risco. Já estavam em ascensão, em alguns países da Europa central, partidos da extrema-direita. Começou a ser notícia generalizada depois de em maio do ano passado, a Frente Nacional ter sido o partido mais votado em França para o parlamento europeu. O semanário constantemente ridicularizava Marine Le Pen, presidente do partido e filha do primeiro dirigente do mesmo, que não tenho dúvidas, vai aproveitar este momento de fragilidade social para subir nas intenções de voto pela Frente Nacional. Este ato tornou-se portanto uma violação da liberdade de expressão e também um atentado contra os próprios terroristas e que infelizmente também se reflete naquela que é a maior comunidade islâmica a viver na Europa. Acredito que este seja um momento particularmente difícil para todos os muçulmanos residentes em França que não se revêem de modo algum no atentado ao Charlie Hebdo. Porque se há coisa que os imigrantes em Paris ou em qualquer outra parte do mundo, sejam eles de que religiões forem, podem ter a certeza é que estarão seguros enquanto houver sátiras e liberdade para as fazer como houve até agora no semanário Charlie Hebdo. Também é por isso que o semanário faz questão de mostrar que essa liberdade vai continuar com 1 milhão de exemplares nas bancas já na próxima semana. A mensagem é simples, todos têm direito à liberdade de expressão, não nos podem reprimir, e lembrem-se que a nossa liberdade é também a vossa!

Tortura de Dentista

Sempre que vamos ao dentista, estamos a pactuar com a tortura indiscriminada que esses profissionais da saúde praticam. Não me refiro ao medo que o paciente possa ter por uma ou outra ferramenta que é usada durante a consulta. Ainda que pareçam assustadoras, acredito que nem mesmo um alicate, uma sonda ou até uma broca sejam tão subversivos. A verdadeira tortura começa já a consulta tem por norma começado. Depois de uns instantes confortavelmente reclinado - embora que tenso - na cadeira de dentista, surge o primeiro avanço do que se tornará uma conversa. E como em tantas outras ocasiões, a meteorologia é um dos temas verosímil a debate. E é neste ponto que as coisas se tornam diferentes, na medida em que este debate assemelha-se mais a um monólogo do que a uma conversa ponderada onde se discutem pontos de vista diferentes mas sobretudo pontos de vista semelhantes. É de facto uma tortura quando estamos completamente impotentes e não somos capazes de responder e argumentar contra algo que nos é dito. Minto. Podemos alegar que "haaaaaaaaaaaaaaa" ou "eeeeeeeeeeeeih" que, tendo em conta a nossa situação tornam-se ferramentas valiosas. Levantar a mão esquerda se estiver a doer é um método de comunicação necessário e útil obviamente, mas insuficiente tento em conta a complexidade dos temas que muitas vezes são debatidos. A verdade é que nem os dedos dos pés chegariam para expressar tudo aquilo que facilmente expressamos verbalmente. Há uma espécie de contrato, que não existe fisicamente, estabelecido entre o paciente e o dentista. A nossa liberdade de expressão é nesta situação menosprezada e no entanto pactuamos e estamos completamente de acordo com isso uma vez que se trata de um serviço. E, na generalidade a sociedade aceita que assim seja. Os que não, podem gabar-se disso mas certamente terão tártaro acumulado entre os dentes. Temos perfeita noção de quando é legítimo privar alguém desta liberdade e sobretudo de quando não é, - na maioria das vezes que estamos para lá de um consultório de dentista. Devíamos aprender mais com uma destas visitas que faz parte do quotidiano, - embora que muitos tentam evitar. Por vezes as ferramentas que eles usam provocam sofrimento, e no entanto temos consciência de que nos estão a prestar um serviço do qual sairemos beneficiados! É uma alegoria para pensar.