Passagem de Ano Inversa

Num dia estamos a celebrar o aniversário de Jesus e no outro o nosso. A única diferença é que tenha o primeiro a idade que tiver, será sempre o menino, nós não. Estamos a viver os últimos momentos do ano. Já começa a haver uma consciência de que desejar bom Natal não deve aparecer na mesma frase que desejar um bom ano novo. Desejar bom Natal já é suficientemente fantasioso. Desejar bom ano novo é drástico, podendo ser até escandaloso. Mais grave ainda é desejar boas entradas a alguém com iminentes problemas de calvície. Ora, como podem os portugueses ver o novo ano como bom se a ele está geralmente associada nova carga fiscal e mais medidas de austeridade? Hoje em dia já se começa a desejar bom ano novo se as coisas se mantiverem como estão, - o que já não é de todo mau -, ou naturalmente embora que de forma mais esporádica, se melhorarem, nunca, em caso algum, se piorarem. Por isso, a tendência deveria ser inverter as festividades da passagem de ano no sentido de comemorar ao máximo os últimos momentos de cada ano e deprimir com a entrada no novo. "Hey! Ainda estamos em 2014!" "Felizes últimos segundos do ano!" Não se faz uma contagem decrescente eufórica e animada, mas antes uma contagem tensa e silenciosa como se de uma bomba relógio se tratasse. Quatro, três, dois, um, zero. Já não há volta a dar, o novo ano está mesmo aí. O que há a fazer agora é tolerar 365 dias nos quais daremos conta que para o ano estaremos ligeiramente piores. Esta ideia fará com que festejemos sempre alegres e contentes no dia 31 de dezembro de cada ano e não tristes e contentes no dia 1 de janeiro. Usufruamos este magnífico champanhe enquanto o seu IVA não sobe. Contemplemos este fogo de artifício enquanto não se pagar uma taxa extraordinária para isso. Comamos uma fatia de bolo-rei enquanto o preço dos combustíveis não volta a subir drasticamente. E assim por aí fora… Como resolução de ano novo deixam de aparecer os típicos desejos como, ler mais livros, ter um filho, aprender equitação, fortalecer os laços com os colegas de trabalho, plantar uma árvore, etc. e passa a haver um ponto único: durar.

Lista de Feriados

Numa altura em que muitos feriados, quer civis quer religiosos, foram dispensados temporariamente, o governo mostra-se flexível em atribuir tolerância de ponto aos funcionários públicos na altura do Natal e ano novo. Feriados há em demasia. Tolerância de ponto? Nem por isso. Ainda assim acho que em termos burocráticos não soa tão bem tolerância de ponto como feriado. Tudo bem que num temos a alusão à tolerância, tão necessária no planeta em que vivemos. Mas ponto remete-nos para algo pontual e portanto esporádico, e disso não gostamos tanto. Feriado não é tão extenso, é apenas uma palavra e o prefixo alusivo a férias é agradável. Apesar de ser em excesso para a Troika, a função pública, por estes dias, até deve ser vista como pouca para o governo, que espera que toda ela se lembre no próximo ano, da tolerância de ponto com que foi brindada, e que isso possa ajudar a tomar uma ou outra decisão, quem sabe. Na minha opinião todos os feriados deviam ser uma espécie de tolerância de ponto com possibilidade de escolha. Ora, eu este ano quero o 5 de outubro? Muito bem, risca-se o 5 de outubro. Aplicar uma metodologia semelhante aos duodécimos mas no contexto dos feriados. Dar a ilusão de escolha aos portugueses como a uma criança quando se pergunta, "Queres ir tomar banho antes ou depois do jantar?". Procurar um consenso entre os feriados civis e religiosos. Que cada um possa requerer a sua própria lista de feriados anotando por meio de cruz, por exemplo - espero não estar a ser tendencioso -, aqueles a que quer ter direito. Feriados civis? Podem tornar qualquer um num nacionalista. Religiosos? No maior devoto. Tolerância de ponto? Certamente, numa pessoa que não se preocupa se os feriados vão calhar ao fim de semana ou não, porque à partida escolheu-os para seu próprio benefício. Mas longe estão os cortes de abranger apenas feriados e dias santos. Os salários também sofreram reduções. Claro que estes não tiveram mais que a tolerância habitual nesta altura do ano. Tal como na situação dos feriados e tolerância de ponto, salário é o mesmo que remuneração. Salário tem a sua origem em sal, método de pagamento usado na Roma Antiga. É provável que algo tenha ficado bem lá atrás para que agora seja legítimo justificar as reduções salariais com base nesta nossa grande preocupação que é o sal. Quem sabe não seja uma enorme metáfora para implementar hábitos de vida saudáveis que remonta à origem latina da palavra. Num país com tantas pessoas com hipertensão e outros problemas relacionados com o consumo excessivo de sal esta pode ser vista como uma medida subtil ainda que indireta para combater este flagelo. Reduz-se no salário, reduz-se no sal. É um raciocínio simples mas não tão imediato assim. A conclusão é só uma, afinal de contas cuidam-nos da saúde e nós nem desconfiamos disso.

Toca a Todos

Chegou finalmente a Portugal a iniciativa que se verificou como a maior angariação de fundos a reverter contra a pobreza infantil alguma vez realizada em Portugal. O “Toca a Todos” nasceu na Holanda - o que, não se enganem, não justifica a cor da campanha adotada pela RTP e Antena 3 para Portugal. “Serious Request”, assim se chama a campanha original, realizada pela primeira vez em 2004 pela rádio holandesa “3fm” que rapidamente se espalhou por outros países, em especial na Europa. Esta maratona de solidariedade, inédita no nosso país, reuniu grupos de vários pontos do país que foram verdadeiros embaixadores do “Toca a Todos”. O Terreiro do Paço foi o ponto de encontro onde estava também montado o famoso estúdio de vidro, - imagem de marca desta campanha - de onde os animadores da Antena 3 fizeram uma emissão especial de 73 horas seguidas. Também montaram um palco por onde passaram artistas portugueses que se associaram a esta causa. Nuno Markl que apelidou o “Toca a Todos” como o mais perto que Portugal já esteve de um Live 8, elogiou a iniciativa e em especial a coragem da sua mulher Ana Galvão em alinhar nesta iniciativa. E, quando a palavra de ordem é ajudar, não existem concorrências, que, mesmo sendo ele o apresentador d’"O Homem que Mordeu o Cão" da Rádio Comercial, fez questão de falar desta iniciativa na estação de rádio da Sampaio e Pina. É também uma iniciativa diferente porque são raras as vezes que uma maratona televisiva apela para as chamadas de valor acrescentado sem que a ele esteja associado um prémio monetário. O evento decorrido de 3 a 6 de Dezembro, não só nos alertou para uma causa preocupante e urgente como a pobreza infantil, mas, também nos mostrou que fechar pessoas dentro de uma caixa de vidro e fazer uma emissão em direto, pode resultar numa iniciativa louvável e não naquilo que nós sabemos!

O Padre Voador

Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nasceu em Santos no Brasil em 1675. Por ser o autor daquela que é considerada a primeira máquina da história capaz de fazer um ser humano voar – um aeróstato primitivo -, ficou conhecido como “O Padre Voador”. Apesar de hoje ser um cognome notável e grandioso, - capaz de fazer corar qualquer rei de qualquer dinastia - na época foi-lhe atribuído com um sentido depreciativo, estando voador, neste contexto, perto de lunático, fantasioso, excêntrico… tolo ou maluco, como era tomado pela maioria das pessoas do seu tempo. É evidente que o povo dessa época enaltecia os descobrimentos marítimos e a conquista de novas terras, porém, o domínio do céu fazia-lhes confusão. Como se fosse lá o céu pertença dos homens! De facto, o fascínio de Bartolomeu de Gusmão em construir um objeto capaz de voar, faz de Portugal um país que partiu para os descobrimentos em quase todas as direções! Também a atribuição do nome “Passarola” a este tal objeto que, pela primeira vez na história faria alguém voar, denota o quanto Bartolomeu de Gusmão e a sua invenção foram ridicularizados. O mais famoso desenho da passarola é um bom exemplo disso. Asas e cabeça de pássaro na proa eram duas das características fundamentais para que a invenção de Bartolomeu de Gusmão levantasse voo. Afinal de contas os pássaros conseguiam e ninguém lhes perguntava como! Apesar dessa ser uma noção popular que parece ter ficado imortalizada nos famosos desenhos da Passarola, Bartolomeu de Gusmão nunca deve ter tido tal ideia, pelo menos nenhuma evidência nos leva a acreditar em tal coisa. Um entendido em física como era Bartolomeu de Gusmão teria, por certo, o conhecimento fundamental para compreender as leis gravitacionais, de dinâmica etc. e perceber quais as características necessárias para que o seu objeto pudesse efetivamente voar. Não foram as leis da física que inquietaram Bartolomeu de Gusmão, essa tarefa havia de caber ao Tribunal do Santo Ofício que o acusou de se ter convertido ao judaísmo e de pactuar com os chamados cristãos-novos. Apesar de se ter exilado em Espanha, onde acabaria por morrer na cidade de Toledo, Bartolomeu de Gusmão não chegou a sofrer verdadeiramente nas mãos dos inquisidores. Arrisco-me até a chama-lo de “O Isaac Newton português”. Fiel aos valores da doutrina cristã católica mas também um homem das ciências que estava claramente à frente do seu tempo. Deixou-nos uma enorme herança cultural onde se somam outras incríveis invenções. Há também que saudar o facto de não ter resistido até aos nossos dias nenhum registo acerca do aspeto físico e funcional da Passarola. É claro que se perde uma parte importante da história portuguesa e mundial, porém, isso deixa-nos em aberto a inventiva popular e a imaginação em volta de todo e qualquer objeto com proa, um balão, bico e asas. Foi assim que a Passarola ficou conhecida em todo o mundo, e mesmo não sendo capaz de levantar voo, acabou por voar!