Língua

Há uma língua portuguesa que não é falada por ninguém. Uma língua portuguesa padrão e regida por convenções bem definidas. Apesar disso, a língua portuguesa expressa-se de tantas maneiras diferentes, quantas as pessoas que a falam. São aproximadamente onze milhões de diferentes manifestações do português, língua oficial, só em território português. Nenhuma delas pode ser considerada errada, tão-pouco nenhuma pode ser hierarquizada, todas são válidas, corretas e objecto de estudo, e contudo, não há uma só que obedeça a todas as convenções da gramática do português padrão atual. Por outras palavras, não há ninguém que sempre respeite todas as regras de escrita e oralidade da língua. Este conceito de desrespeito e infracção às normas linguísticas, não é exclusivo dos falantes da língua portuguesa. Não é característica única deste povo a rebeldia latente em desobedecer à gramática portuguesa. Nada faz dos portugueses mais indisciplinados do que os demais povos. De facto, não há uma única língua que seja falada, em toda a sua plenitude, segundo convenções pré-estabelecidas. Esta quebra generalizada entre teoria e prática é do conhecimento de linguistas e está também muito presente no senso comum, na conceção generalizada de gramática e oralidade. Apesar de não existir uniformidade na expressão e escrita do português, as diversas formas de expressão existentes são essenciais e preciosas para que a língua continue constantemente a evoluir. Não obedecer a todas as convenções gramaticais é normal, e espante-se, se lhe disser que, os agora considerados poetas maiores e grandes escritores da língua portuguesa, também em seu tempo desobedeceram e suplantaram regras então tidas como as únicas gramaticalmente aceitáveis. Todas as regras gramaticais da língua não passam de convenções temporárias, frágeis e passiveis de mudanças, que estão em constante alteração, não havendo maneira de as impedir. Essas mudanças são ditadas pelos falantes. A língua tem as suas regras assentes na expressão oral e escrita, e consequentemente, são os falantes que moldam as regras da língua e não o contrário. A língua sofreu diversas alterações ao longo dos séculos. Não se entenda o emprego do verbo sofrer como algo doloroso e angustiante. Na verdade, a língua não sentiu nada disso. Quero dizer que essas alterações são normais, e continuarão a ocorrer, mesmo que o mais patriota dos portugueses a tome como uma afronta a um dos maiores símbolos da nação, a língua.

Personagens

Há esperança que um dia todos estes seres criados, e criados no sentido de concebidos e de servos, se levantem e se apresentem em tão familiar ambiente. Que se ergam lá do sítio onde estiverem e caminhem entre nós como até agora o têm feito, não tão raras vezes e de forma mais ou menos impercetível. São eles os muitos e as muitas com ou sem nome que nos invadem sem existirem, existindo tão-somente em nós. Que particular espécie de parasitas que se nos entranham e vão dando sintomas de nos possuírem mais do que de nos pertencerem. A sua quase existência confinada a páginas impressas e a manuscritos transforma-se progressivamente numa existência vária, múltipla, que toma lugar em numerosas criaturas. Somos nós, os carrascos desta sentença, a lenha desse fogo. Meros escravos por haver, que serviram outrora a quem os criou, e que vão subtilmente escravizando quem os lê. Que seja um descargo de consciência usar estes seres criados como marionetas dos seus criadores, para afastar de cabeças tolas a ideia de que, criador e criação partilham afinal as mesmas ideias. Se for esse o caso, que se ponha quanto de perigoso pareça existir para nos corroborar ideias e pensamentos embrionários em personagens fictícias que garantam o afastamento necessário entre o inventor de pensamentos perigosos e aquele que transmitirá tal ideia como sendo sua. Nada existirá de físico em transmitir uma ideia nem em retê-la na memória. Personagens fictícias não são dotadas de palpabilidade nem de uma existência concreta, têm a sua esfera existencial confinada a páginas de livros e à imaginação de cada leitor. De facto, algumas personagens, mais do que se manifestarem em nós, fazem-se ser vistas nos outros. Ainda se vê um Dâmaso Salcede a descer a rua. Acompanhamos uma Madame Bovary que procura a plena satisfação na vida. Observamos um ou outro Napoleão, o porco Berkshire, sempre que uma voz mais altiva e categórica se alevanta. Por esta razão, se julgamos proveitosa a manifestação de algumas personagens em nós, já outras, somente nos envergonham à mais pequena manifestação. As pessoas são personagens tipo que inspiram estas e por estas se deixam inspirar. De uma forma ou de outra todos nós nos identificamos com uma qualquer personagem de novela, romance, conto, drama ou até poesia. Figuras com personalidade, sem carne nem osso, mas com uma existência ampla. São eles que nos desassossegam e nos mudam. São eles que nos perturbam e ainda assim é a eles que dedicamos grande parte do tempo. Um masoquismo da alma que se torna difícil compreender. Mesmo em pleno processo de parasitação, ficamos agarrados a tais criaturas sem rosto nem identificação fiscal. Não nos desprendemos deles, andam sempre connosco. Uma multidão imensa, que cabe em nós.