Personagens

Há esperança que um dia todos estes seres criados, e criados no sentido de concebidos e de servos, se levantem e se apresentem em tão familiar ambiente. Que se ergam lá do sítio onde estiverem e caminhem entre nós como até agora o têm feito, não tão raras vezes e de forma mais ou menos impercetível. São eles os muitos e as muitas com ou sem nome que nos invadem sem existirem, existindo tão-somente em nós. Que particular espécie de parasitas que se nos entranham e vão dando sintomas de nos possuírem mais do que de nos pertencerem. A sua quase existência confinada a páginas impressas e a manuscritos transforma-se progressivamente numa existência vária, múltipla, que toma lugar em numerosas criaturas. Somos nós, os carrascos desta sentença, a lenha desse fogo. Meros escravos por haver, que serviram outrora a quem os criou, e que vão subtilmente escravizando quem os lê. Que seja um descargo de consciência usar estes seres criados como marionetas dos seus criadores, para afastar de cabeças tolas a ideia de que, criador e criação partilham afinal as mesmas ideias. Se for esse o caso, que se ponha quanto de perigoso pareça existir para nos corroborar ideias e pensamentos embrionários em personagens fictícias que garantam o afastamento necessário entre o inventor de pensamentos perigosos e aquele que transmitirá tal ideia como sendo sua. Nada existirá de físico em transmitir uma ideia nem em retê-la na memória. Personagens fictícias não são dotadas de palpabilidade nem de uma existência concreta, têm a sua esfera existencial confinada a páginas de livros e à imaginação de cada leitor. De facto, algumas personagens, mais do que se manifestarem em nós, fazem-se ser vistas nos outros. Ainda se vê um Dâmaso Salcede a descer a rua. Acompanhamos uma Madame Bovary que procura a plena satisfação na vida. Observamos um ou outro Napoleão, o porco Berkshire, sempre que uma voz mais altiva e categórica se alevanta. Por esta razão, se julgamos proveitosa a manifestação de algumas personagens em nós, já outras, somente nos envergonham à mais pequena manifestação. As pessoas são personagens tipo que inspiram estas e por estas se deixam inspirar. De uma forma ou de outra todos nós nos identificamos com uma qualquer personagem de novela, romance, conto, drama ou até poesia. Figuras com personalidade, sem carne nem osso, mas com uma existência ampla. São eles que nos desassossegam e nos mudam. São eles que nos perturbam e ainda assim é a eles que dedicamos grande parte do tempo. Um masoquismo da alma que se torna difícil compreender. Mesmo em pleno processo de parasitação, ficamos agarrados a tais criaturas sem rosto nem identificação fiscal. Não nos desprendemos deles, andam sempre connosco. Uma multidão imensa, que cabe em nós.