Fim

Por caminhos sinuosos e em terra batida, por estreitas fileiras entre campos de cultivo ou na dura pedra de íngremes montanhas, quer fizesse sol ou chuva, vento ou tempestade, ora encontrando cascalho, pedras soltas e ervas daninhas, ora por autênticos desertos do que quer que seja, daquilo que os desertos não têm, lá ia um burro andrajosamente adornado que não passava despercebido, se necessário fosse dizê-lo, mesmo naquelas terras onde era este o animal mais usado para carga e outros ofícios. Não havia maneira deste errante burro vir a confundir-se no meio dos seus iguais mesmo que a este carga também lhe pesasse no lombo. Sobre este burro ia um colorido caixão que não raras vezes se havia dado como outra coisa qualquer. Em primeiro porque não é hábito destas gentes carregar caixões com o auxílio de um burro e depois, porque se hábito fosse, os caixões haveriam de ser como são os demais, que não tendo a sorte ou o acaso de serem levados ao colo deste teimoso animal, apodrecem na terra da mesma forma juntamente com o corpo que levam dentro. Deste caixão que parece não ter dono senão aquele a quem serve, não se conhece o destino, vai errante numa demanda que aparenta não terminar, quando, pelos factos relatados, esta é uma história de fim, onde tudo já havia terminado antes mesmo de ter começado. O burro fazia-se acompanhar por latas que chocavam umas nas outras abalando assim o silêncio envolvente, a calmaria de planícies de trigo, a pacatez de ruas envolvidas por musgo e onde o sol só espreita por vaidade, outros há onde apenas o leve som dos pássaros se faz ouvir e são esses os primeiros a romperem subitamente dos ramos das árvores e a dispersarem-se pelo ar assim que dão conta de um estranho ruído que antecipa a chegada de tamanha folia, como se barulho fosse preciso fazer para chamar a atenção dos que, não admirados com um burro, que esses sempre os vêm passar de vez em quando, se espantam com as majestosas vestes andaluzas que este adorna. Vestes que nem o mais endinheirado dos senhores, desta ou doutras terras dispõe quer para fugidias e esporádicas cerimónias ou celebrações quer tão somente como fatiota de domingo para levar à casa do senhor. Tão proveitoso traje, de refinados cortes, e um tecido que carece de delicadas mãos para ser trabalhado, e havia de ser um burro, o mais reles animal e com má fama, a levá-lo sobre o amarfanhado pelo. A todo o lado chega o estalar dos chicotes ou o seu eco, confundido o eco com o som da corda a bater sobre si, que mesmo parecendo fortes trovões, dão conta a par do barulho das latas, da euforia geral da procissão. Nem burro serve para carregar com um morto, nem um morto, seja que morto for, serve para ser carregado por um burro, mesmo que a um morto nada se recuse. Este cadáver adiado que procria mais não é do que a razão das festividades a que ousaram chamar de velório. Toda esta folia é dele, mesmo que nunca o venha a saber, nem ninguém saiba em verdade, quem foi outrora este agora cadáver que por certo desejou um fim em tudo contrário aos demais fins - daqueles que têm por vida a sepultura, dos que vivem sem que nada mais lhes diga do que a lição de raiz. À roda dele vão acrobatas e palhaços que fazem acompanhar o passo do burro, ora adiantando-se para a frente deste, ora deixando que os seus saltos e pinotes façam avançar a vagarosa marchar do equídeo. E mesmo saltando de um lado para o outro com alegres passadas, estes palhaços e acrobatas ainda conseguem fazer malabarismo entre si, não dando sequer um passo em falso nem jamais deixando cair uma clave de malabares, um arco, uma bola, uma tocha ou quantos mais objetos houvessem em diferentes trajetórias pelo ar. Em algumas passagens desta viagem sem fim à vista, juntava-se o povo para ver passar o burro enfeitado e o caixão com um rebordo de flores - do qual se conhece a papoila -, quer para apreciar a arte dos palhaços e dos acrobatas, que eram novidade naquelas bandas, quer para ver passar os demais que em altos ruídos se iam juntando ao desfile. Mesmo depois de já ir o burro adiantado, muitos ainda ficavam, julgando voltar a vê-lo passar talvez. Mas não voltaram.