Matança da Páscoa

Os cristãos-novos de Lisboa apressavam o passo pelas estreitas ruas da cidade, sobre a luzidia calçada portuguesa, polida de tantos por ali passarem. Em todas as ruelas e até nas mais pequenas quelhas ainda definhavam excrementos dos moradores da noite anterior, que envolviam toda a cidade num imundo esterco, sinal da peste que viera ou da que ainda estava por vir, e que assolava todo o povo e velava Lisboa numa densa sombra negra de incerteza e medo.
Faziam-se chegar até ao largo de São Domingos acompanhados também por católicos – os cristãos velhos -, para ouvir a palavra deste deus que lhes arranjaram e que agora também era o deles, ou por imposição aparentavam sê-lo. Ao convento de São Domingos vão chegando cristãos, novos e velhos, que mesmo não sabendo nada de latim, e muito pouco da religião onde foram instruídos, se precipitavam para diante do altar para melhor verem a celebração da missa que não tardaria a começar. Sôfregos de uma resposta divina que fizesse cessar a já tão prolongada seca que fustigava a região, os crentes - mais crentes ainda nestas alturas de preocupação -, imploravam a deus misericórdias várias, cada um à sua maneira e como melhor sabia, que deus se fosse realmente grande e todo-poderoso como se dizia, haveria de os ouvir a todos e saciar as preces daquele povo. O convento já estava repleto de gente que continuava a passar além dos altos muros de um átrio grandioso para presenciarem também a missa e fazerem votos ao senhor. Naquele domingo, dezanove de abril do ano da graça de mil quinhentos e seis, os católicos imploravam sabidamente mais do que em tempos não tão sofridos nem de um sufoco tão grande, deixando-se assim cair cobardemente nas mãos deste deus, que castiga aos Homens pelos seus pecados e os recompensa pelos seus louvores – ou faz tão-somente umas aleatoriedades como as há no universo. Ainda a procissão ia no adro quando um católico, interrompendo de súbito a suplicada reza, se levanta de entre a multidão e aponta para o altar dizendo, Milagre, iluminou-se o rosto de cristo, logo depois outras vozes se levantaram em espantos vários e nas mármores pedras do convento ecoaram frases como, Finalmente uma mensagem de deus, ou ainda, Tenha misericórdia de nós senhor, ou depois ainda, já repetidas vezes, por muitos católicos, Milagre, milagre, milagre. Não tardou até todo o convento ficar envolvido de uma unissonante voz, pasmada e cega que proferia, Milagre. De entre eles surge então uma já tardia voz discordante, Irmãos, então não vedes que é a luz que vem da vela que alumia a figura de cristo crucificado.
Tal observação foi tida como uma afronta aos poderes divinos e inquestionáveis de deus. Repentinamente, católicos enfurecidos pelas proferidas palavras, começaram em protestos de toda a ordem que se adensaram quando alguém gritou tão alto, Herege, que pareceu abalar as brancas e frias paredes do convento e tudo o que elas simbolizavam. Continuaram os gritos, perdeu-se a ordem e dispersando-se dos seus lugares, católicos e cristãos-novos começaram uma troca de acusações e insultuosas injúrias. Dando conta das infames palavras do sefardita, alguns paroquianos agarraram prontamente o homem pelos negros e desgrenhados cabelos e arrastaram-no pelo chão, sem piedade, ao longo do convento de São Domingos até ao largo com o mesmo nome. O homem esperneou, esbracejou e soltou esganiçados gemidos de dor, perguntando talvez que costumes eram aqueles da religião no qual o estavam a tentar instruir. Já na rua debaixo de um sol aberto de primavera, foi espancado, agredido a pontapés pelos católicos que se iam juntando e fazendo da sua raiva, uma única e pertinaz ira de incitação ao ódio.
Incendiando ainda mais os ânimos dos tumultuosos católicos que viam nestes sefarditas e nos restantes cristãos-novos, a razão para todos os males de que o país padecia, um frade dominicano empunhando um crucifixo, começava a incitar a turba contra estes homens e mulheres, chamando-os de criptojudeus e acusando-os de blasfémias várias num discurso inflamado, Heresia, heresia, vede vós irmãos como eles têm o diabo no corpo, vede como chegaram para nos arruinar. Momentos mais tarde e estando já o desgraçado a dar os últimos gemidos depois de ter sido açoitado e lhe terem perfurado o corpo, com o que iam arranjando, para por da essência anímica do seu sangue, o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a expulsão e morte dos cristãos-novos e defender a identidade nacional, enuncia ainda o frade, Quem matar a descendência de Israel, terá cem dias de absolvição no mundo que há-de vir. E com vários pedaços de madeira, o mesmo material de que era feita a imagem de cristo e que havia sido iluminado pela vela, desta vez, não só se iria iluminar também esta madeira, mas ardê-la, para que nela ardesse também aquele cristão-novo que vira mais do que aquilo que deveria ter visto. Uma multidão de cerca de quinhentas pessoas, muitas juntando-se às que estavam no convento de São Domingos neste dia e testemunharam os acontecimentos, percorreram as ruas da cidade com forcados, garfos, segadeiras, sachos, forquilhas, paus, pedras e tudo quanto fosse capaz de abater e fazer castigar a cristãos-novos. Todos quantos fossem vistos, eram mortos ali mesmo ou arrastados violentamente para as fogueiras que se tinham acendido por toda a cidade e onde os cristãos-novos eram queimados vivos. Encetava em Lisboa um enorme tumulto de morte aos sefarditas, e a todos aqueles que proferiam uma fé disfarçada e não se comportavam segundo os valores cristãos católicos. Os outros que iam começando a dar conta do alarido geral, adiantavam-se para os parapeitos das janelas para mirar as ruas à procura de sinais do que se estava a passar. Desbandaram-se vários grupos que alastravam pelas sete colinas, onde se juntavam os católicos saídos de suas casas, não para ir orar à casa do senhor mas para manifestar a sua fé fustigando a cristãos-novos e quanta escumalha se lhe aparecesse à frente e fosse passível de degredo ou fogueira. O alcaide de Lisboa apercebendo-se do tamanho motim, tentou defender os cristãos-novos com a ajuda de sessenta homens e dirigindo-se ao largo de São Domingos tenta fazer detenções e apurar os responsáveis por aquela carnificina. De nada adiantou, apercebendo-se o povo de que este magistrado municipal estava do lado dos cristãos-novos, e portanto do lado da blasfémia e do pecado, foi acusado de pactuar com eles. O povo virou-se contra ele, de nada adiantou, foi perseguido e só não acabou na fogueira ao lado dos cristãos-novos que procurava defender, porque se refugiou em casa. As fogueiras foram alimentadas com as acendalhas do império, servos e escravos africanos. Não perderam a rubra cor durante toda a noite, brilhando sobre a margem do rio Tejo e dispersando fumo por toda a cidade, num dia em que quinhentas pessoas foram queimadas em Lisboa.
No dia seguinte a situação agravou-se, apercebendo-se os católicos que os cristãos- novos não haviam saído sequer das suas casas na manhã de segunda-feira e estando já as fogueiras sedentas de carne humana, fizeram ajuntamentos que reuniram mais de mil pessoas e arrombaram as portas das casas onde se sabia que moravam e se escondiam famílias de cristãos-novos. Entraram pelas casas adentro, escancarando as portas, agarraram famílias inteiras, pais, mães, crianças, velhos e novos, empurraram as mulheres grávidas pelas janelas onde as esperavam em baixo na rua, uma multidão com forcados e segadeiras para as esquartejar. Os fetos, envoltos em sangue, são arremessados e pregados como troféus nas forquilhas e espadas. As vítimas eram puxadas para fora das casas até às ruas, arrastadas, esmagadas contra as paredes e lançadas para as fogueiras. Aos homens partiam-lhes os ossos, traziam-nos para o largo de São Domingos, pontapeando-os, amortiçando-os, apedrejando-os, esmurrando-os de tal ordem que poucos eram os que ainda chegavam com vida às brasas das fogueiras. Entraram nas igrejas e arrancaram as imagens de cristo e da nossa senhora, das mãos de cristãos-novos que ali procuravam mostrar a sua fé por aquela doutrina. Todos tiveram o mesmo fim, uns eram açoitados tão violentamente nas ruas onde eram encontrados que morriam ali mesmo, arrefecendo na calçada, os outros, morriam queimados nas fogueiras, que haviam iluminado Lisboa com uma tenebrosa luz de melancolia.
A cólera abrandou na terça-feira, decorrendo dos acontecimentos deste dia e dos dois anteriores, a perda de cerca de três mil vidas. Lisboa haveria de ficar conhecida como cidade da tolerância.